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A OCUPAÇÃO DOS CAMPOS DE LAGES
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
A imensa região dos “Campos das Lagens” começou a ser ocupada, por famílias vindas de São Paulo, a partir do ano de 1690. Pedro Calmon, historiador brasileiro, escreve, em seu segundo volume da “História do Brasil”, que, nessa época, em São Paulo, muitas famílias poderosas, entre elas os Pires e os Camargo, lutavam entre si em disputas ferrenhas.
O governador da Capitania ordenou que estas duas famílias saíssem de São Paulo. Em obediência, as mesmas vieram para o Sul, instalando-se nos campos de Lages, Vacaria e Bom Jesus – “numa luta quase suicida pela posse das terras e suas riquezas”.
No entanto, o Dr. Afonso Alberto Ribeiro Neto (jornalista Al Neto) afirmava, segundo citação do pesquisador e escritor Sebastião Ataíde, que os primeiros fazendeiros no Termo de Lages foram Manoel da Silva Ribeiro com seus filhos Inácio e Pedro da Silva Ribeiro, que, através de requerimento, obtiveram, em 1675, uma Sesmaria de 500 milhões de metros quadrados.
Mas, considerando a história a partir de documentos oficiais, a ocupação dos Campos de Lages e seu Termo começou a se viabilizar a partir de articulações da Coroa portuguesa, em 1720. Nessa época, Lisboa, visando ligações com Laguna que tinha seu termo até Araranguá, queria uma comunicação de São Paulo com o litoral Sul do Brasil e com Viamão, pelo interior, por meio do Sertão de Curitiba. Esta ligação pelo interior possuía interesses estratégicos militares e econômicos, em especial, desde o momento em que Portugal funda a Colônia do Sacramento. Neste período a região Sul passou por uma séria disputa entre a Coroa portuguesa e a Coroa espanhola. Não foram poucos os confrontos entre as partes envolvidas no conflito. Portugal almejava o controle sobre o avanço castelhano pelas ricas terras do sul, povoadas por milhares de cabeças de gado.
Assim, naquele ano de 1720 houve uma negociação com um paulista, chamado Bartolomeu Paes, a fim de que abrisse uma estrada pelo interior, subindo a Serra Geral e cortando todo o sertão de Curitiba até São Paulo. Mas Bartolomeu Paes fez tantas exigências para levar a cabo o empreendimento que Lisboa não aceitou a proposta. (Mafra, Manoel da Silva. Exposição Histórico Jurídica 1899).
Passaram-se alguns anos e, entre 1728/1730, Francisco de Souza Faria aceitou a empreitada, por iniciativa do governador de São Paulo, Antônio da Silva Caldeira Pimentel. Desta feita Lisboa concordou com os investimentos e incentivou os procedimentos para a conclusão efetiva do projeto em andamento, conforme carta recebida pelo governador de São Paulo:
“Faço saber á vós Antonio da Silva Caldeira Pimentel, Governador da Capitania de S. Paulo, que se vio a Conta que me destes em Carta de deseseis de Julho do anno passado, sobre a abertura da Estrada do Rio Grande de S. Pedro do Sul, para os campos de Curitiba, e sucessivamente para essa cidade. Me parecêo agradecer-vos o zelo com que tendes mandado abrir esta Estrada, e que se espera mandeis continuar até se findar, e do mais que houver nesse particular, me dareis conta”. Lisbôa Occidental, 10 de Outubro de 1730. (Porto Seguro cit.- pago 851.- Vol. 20 2).
Segundo relatado pelo Visconde de Porto Seguro, Francisco de Souza Faria liderou mais de setenta homens a cavalo. Souza Faria partiu de Viamão (RS), seguindo pelo litoral até o Morro dos Conventos, que pertencia ao Termo de Laguna. Nessa região, conhecida por Conventos, foi onde ele e seus homens começaram efetivamente a abrir a estrada, seguindo rumo acima, costeando o rio Araranguá até atingir os campos de “Vacarias dos Pinhais”, cruzando o Rio Pelotas e entrando nos “Campos das Lagens” que, naquela época, fazia parte do Sertão de Curitiba que, por sua vez, pertencia à Capitania de São Paulo.
Francisco de Souza Faria atravessou todo o percurso, desde Viamão e por todo o Sertão de Curitiba, com seus setenta homens e animais. Foram dois longos anos de trabalho abrindo picadas, subindo as encostas da Serra, construindo pontes, atravessando rios e então chegou a Sorocaba. O transcurso exigiu longas paradas diante dos acidentes geográficos, que precisaram ser vencidos e deixados em condições de mínima trafegabilidade para as próximas tropas que por ali passariam. Os animais descansavam e engordavam nos melhores pastos encontrados pelo caminho. Provavelmente dois invernos rigorosos foram sentidos antes de finalmente adentrar em Sorocaba. Estava aberta a estrada que ligava o interior desde São Paulo até o litoral sul do Brasil, com ativo comércio de muares (mulas que eram vendidas para as minas e outros serviços) e de bovinos.
Antes disso alguns tropeiros cruzaram os Campos de Lages. Mas foi a partir do melhoramento desta” estrada dos conventos”, de Faria – que foi retificada por Christóvão Pereira em 1731 – que o ciclo do tropeirismo se firmou e passaram a ser frequentes as viagens de tropeiros pelo interior, desde Viamão, passando pelos Campos de Lages, até Sorocaba, São Paulo. A grande e definitiva inauguração do traçado foi feita pelo próprio Christóvão Pereira, em 1731, levando oitocentas cabeças de gado e cavalares. Depois, o mesmo Christóvão Pereira tornou a fazer o caminho com mais cento e trinta pessoas, conduzindo três mil cavalgaduras entre as suas e as dos particulares que o acompanhavam. Também levaram junto quinhentas vacas. O trajeto foi feito em treze meses. O chão da trilha original foi compactado com o peso de milhares de animais, o que deixou o solo definitivamente demarcado. O trajeto, segundo consta nos registros, “ficou muito transitável”.
A despeito de moradores pioneiros já mencionados, outros tropeiros foram se estabelecendo na região após a definitiva abertura do caminho das tropas, em 1730. Um dos tropeiros pioneiros no estabelecimento de fazenda em Lages foi Bento Soares da Motta, vindo de Taubaté no começo dos anos de 1730. (Costa, 1982).
O local de paragem dos tropeiros e das tropas para engorda e descanso, passou, pelas características geográficas, a ser conhecido e mencionado em documentos, a partir de 1740, como Campos das Lagens e Paragem das Lagens. Portanto, antes de Correia Pinto chegar para fundar Lages com doze famílias e escravos, em 22 de novembro de 1766, já havia algumas fazendas espalhadas na região. O próprio capitão Antônio Correia Pinto de Macedo possuía algumas fazendas. O fato de ele possuir algumas fazendas foi apontado como uma das razões para ele ter feito, com recursos de seu próprio bolso, com muita determinação, o investimento da fundação da Vila de Lages. Morar nesta região, estabelecer-se nela, era um desafio. Pela imensidão do Termo de Lages, algumas fazendas existentes pouco contribuíam para projetar um aspecto de região “civilizada”. Era um vasto sertão de campos e araucárias, povoado por indígenas que espreitavam, às escondidas, os novos “vizinhos indesejáveis” que chegavam para “tomar” seu lugar de descanso e sobrevivência.
Mesmo quase cem anos após Correia Pinto ter chegado para fundar a Vila de Lages, um viajante europeu, Robert Avé Lallemant, mencionou o lugar como uma região quase desértica. Mas, ao fazê-lo, deixa registrada uma mostra do panorama praticamente intocado desde que o Capitão Guarda-Mor chegou, com doze famílias e escravos, e, em tom que hoje nos parece poético, ele declarou, em junho de 1858:
“Terra de pasto, em cujas íngremes vertentes ressaltam inúmeras massas de pedra-de-areia cobertas de liquens, ou tudo é coberto de densas matas de araucárias. Neste planalto, essas vigorosas colunas vegetais sobem, aos milhões, de profundos desfiladeiros e trepam as mais íngremes encostas até aos píncaros das empinadas coxilhas. Floresta escura, silenciosa, grave, que eu poderia chamar com propriedade de floresta negra. (...) Lá, entre o pinheiral, escachoam fontes, murmuram regatos, espumam rios nos calhaus de arenito: assim nasce o Pelotas, o verdadeiro rio Uruguai, já adiante chamado Uruguai-Mirim”. Lages, junho de 1858.
Robert Avé Lallemant.
Com o passar do tempo, após a fundação de Lages em 1766, numerosas fazendas foram dividindo o imenso território dos Campos de Lages. Algumas fazendas possuíam mais de cem milhões de metros quadrados.
COMO E ONDE NASCEU A IDEIA DE SE FUNDAR LAGES
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
A fundação de Lages não aconteceu, naturalmente, apenas em função de ser passagem de tropeiros em caminho para Sorocaba, em São Paulo, embora a passagem dos tropeiros tenha facilitado a formação de fazendas na região. O fato de Antônio Correia Pinto de Macedo ter suas fazendas na região dos Campos de Lages também contribuiu para que os arranjos do Morgado de Mateus, D. Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão, fossem efetivados com celeridade ao encarregar oficialmente Antônio Correia Pinto de Macedo de fundar a Vila de Lages.
A fundação da Vila de Lages tem uma figura chave: D. Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão, o Morgado de Mateus. Na ocasião havia uma grande preocupação de Portugal com as investidas da Espanha nas terras do Sul. O Primeiro Ministro do Rei Dom José I, Conde de Oeiras, depois conhecido como Marquês de Pombal, estava muito preocupado em manter a posse de Portugal sobre os territórios à margem do Rio Paraná, e dar-lhe a máxima amplitude, opondo à invasão espanhola do Rio Grande a invasão portuguesa no Ocidente. Assim, como parte das estratégias, resolveu restabelecer a capitania de São Paulo que, por questões políticas, havia deixado de existir em1749.
Originalmente a capitania de São Paulo fora criada pela Carta Régia de 23 de novembro de 1704. Diante de novas circunstâncias políticas o Marquês de Pombal resolve restaurá-la, em 04 de fevereiro de 1765, e o nomeado para ser governador foi o Morgado de “Matheos”, D. Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão. O Morgado de Mateus foi nomeado em 14 de dezembro de 1764 e saiu de Lisboa em 27 de março de 1765. Sua viagem teve duração de 83 dias, chegando ao Rio de Janeiro em 20 de junho. Partindo do Rio em 16 de julho, dia 23 chegou a Santos. Ao chegar em Santos assumiu logo a Administração, e ali mesmo em Santos ele falou com Correia Pinto, sabatinou-o e o designou para fazer os arranjos e preparar a caravana rumo ao Sertão de Curitiba, para fundar a Vila de Lages, por ordens com as quais chegara, do Rei Dom José I e seu poderoso Primeiro Ministro Conde Oeiras, o Marquês de Pombal.
O Morgado não esperou nem mesmo ratificar sua posse como governador em São Paulo, na Câmara, o que veio a ocorrer somente no ano seguinte, em 07 de abril de 1766. Assim, ali mesmo, em Santos, nascem, especificamente, as negociações referentes à nomeação de Antônio Correia Pinto de Macedo para ser o primeiro Capitão-Mor da Vila de Lages. Os trâmites finais durariam um ano e quatro meses, quando a caravana de Correia Pinto já estaria na estrada, deixando São Paulo rumo aos campos de Lages. Na verdade, o Morgado já chegou de Portugal com esta intenção, orientado pelo poderoso Marquês de Pombal com um certo senso de urgência em estabelecer uma povoação nas proximidades do Rio Pelotas para fazer frente aos avanços dos espanhóis sobre o Sertão de Curitiba, que, entendia-se, estava vulnerável ao ataque do inimigo. Sua determinação e celeridade expressa em Santos tinha um nome por detrás: Marquês de Pombal!
Atestado passado a Antônio Corrêa Pinto, fundador da povoação e depois Vila de Lages, assim concebido:
“D. Luiz Antônio de Souza. Certifico que chegando à praça de Santos com as Reaes ordens de S. Magestade F., que Deos guarde, para restabelecer o governo desta Capitania, descobrir, e povoar os Sertões dela, e examinar a extensam do seu continente, e formação dos Rios de suas Fronteiras, e informando-me das pessoas mais praticas, mandei vir á minha presença ao Guarda mor Antônio Corrêa Pinto e depois de o praticar muitos dias, alcançando a sua intelligencia, e capacidade com a grande experiencia, que tinha das campanhas do Sul e Centro das Indias de Castella, lhe ordenei fizesse um Mappa daquellas Campanhas, e executando-o com muita prontidão, nelle examinei que no Sertão e Fronteira desta Capitania, que medêa entre a ViIa de Corityba e sima da Serra de Viamão, em distancia de cento e cincoenta legoas despovoadas, era de grande utilidade ao serviço de Deus e de S. Magestade formar-se uma povoação para fazer testa às Missões Castelhanas, e fortificar o Rio das Pelotas, por ser o Passo mais defensível daquelle Sertam; e necessitando-se de pessôa capaz para esta diligencia resolvi eleger ao mesmo Guarda mór Antônio Corrêa Pinto para executor della, condecorando-o com a patente de Capm. mor Regte. por confiar da sua mta. fidelidade, prudencia e capacide. Soubesse desempenhar este emprego no Real serviço em matéria de tanta importancia; e persuadindo-o com meos rogos logo se apresentou com mto excesso a mudar-se com toda a sua familia pa. aquelle inculto Sertam, deixando o seo domicilio desta Cidade, cometendo uma jornada de trezentas legoas com o preciso despendio de muitos mil cruzados da sua propria fazenda pa. o emprego de armas, munições, cavalgaduras, Escravos, ferramentas, e outros muitos aprestos indispensaveis, pa. se estabelecer em semelhante deserto, cercado de Gentios, e fronteando com inimigos Espanhoes; e logo que chegou o do. Capm. mor ás mencionadas campanhas elegeo o sitio conveniente, dando principio á dita povoação, e executando todas as mais ordens, que lhe encarreguei com notavel diligencia, e fervoroso zello no Real serviço: Pelo que se faz merecedor de todas as Mercês e Honras, q'S. Mage. for servido conferir-lhe. Passo o referido na verdade, q'attesto com o juramento dos Santos Evangelhos: E por me ser pedida aprese. lhe mandei passar por mim assinada e sellada com o sinete de minhas Armas”. S. Paulo em 8 de Dezro. de 1770 - D. Luiz Antonio de Souza. (Arch. de S. Paulo. Vol. xv. Pags. 92 a 93.)
Porém, mesmo expedida, pelo Morgado, a ordem e nomeação de Correia Pinto para a fundação da Vila de Lages, e mesmo depois da ordenação estar em curso de execução com a chegada épica da caravana dos fundadores da Vila de Lages, com cerca de oitenta pessoas, muitas coisas aconteceram numa disputa política envolvendo São Paulo e a Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul. Questões de limites das capitanias de São Paulo e Rio Grande e questões de jurisdição foram alvos de uma extensa troca de correspondências e discussões com autoridades do alto escalão da Coroa no Rio de Janeiro. Mas “o Morgado de Mateus era incontestavelmente, para aqueles tempos, um homem de governo, hábil administrador e político; e nesta questão mostrou a tenacidade de sua vontade, a qual levou a termo” fundando Lages com a chegada de Correia Pinto, em 1766, sob fortes protestos do Coronel José Custódio, governador de São Pedro do Rio Grande do Sul. (Mafra, Manoel da Silva. Exposição Histórico Jurídica. 1899. IHGSC – Coleção Catariniana, 2002. IOESC)
A EMOCIONANTE CHEGADA DOS FUNDADORES DE LAGES
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
Correia Pinto levou um pouco mais de três meses para fazer o percurso de São Paulo até a Chapada do Cajuru, em Lages, para fundar a povoação. A caravana atravessou todo o caminho dos tropeiros, vencendo etapas desafiadoras de rios e riachos. Em alguns lugares precisaram parar dois ou três dias para depois prosseguir a viagem! Podemos imaginar pelo menos oito a dez carroções puxados por cavalos, carregando mulheres, crianças e os mais velhos.
Alguns carroções deveriam estar abarrotados de objetos para cavalgaduras, ferramentas, serras, picaretas, enxadas, martelos, pás, munições para as armas e muitos apetrechos necessários e indispensáveis “para se estabelecer em semelhante deserto, cercado de gentios, e fronteando com inimigos espanhoes”. Alguns teares deviam fazer parte da bagagem transportada, pois as experiências de Correia Pinto lhe ensinaram que esta região era muito fria, os invernos rigorosos. Roupas quentes e cobertas de cama eram indispensáveis para o sucesso do estabelecimento da povoação. Tiveram de carregar na bagagem provisões para alimentar a todos nas longas distâncias em que não havia um morador sequer para reabastecê-los de alimentos. Muito charque, farinha de mandioca e de milho e queijos não devem ter faltado, bem como algumas vacas para o leite diário. Providencialmente, eles chegaram à região de Lages na época da primavera, próximo à entrada do verão. Ainda assim, viajaram em dias muito frios, pegando parte do inverno e parte da primavera, uma vez que iniciaram a viagem na segunda quinzena de agosto.
Semelhante façanha, com famílias inteiras, só era comum nas caravelas que centenas de vezes singraram os mares em busca de portos seguros. Mas em terra firme as incertezas, as apreensões, a ansiedade gerada pelo desconhecido e o medo por causa das feras e de eventuais ataques dos indígenas não era menor! Entre os componentes da caravana, o medo “permeava” os pensamentos daqueles que nunca foram tropeiros, daqueles que nunca tiveram esta experiência de “singrar” as matas, de singrar as florestas de araucárias, de singrar os campos solitários em que, nas ondulações das vastas coxilhas, repercutiam os silvos dos ventos uivantes.
Tudo que podiam fazer era confiar na liderança de Antônio Correia Pinto com seus homens, escravos, armas, e rezar a fim de chegarem sãos e salvos para o desafiador recomeço de suas vidas nos sertões de Curitiba, pertencentes à Capitania de São Paulo, onde, remotamente, se encontravam os “campos das Lagens”. Uma coisa era certa: Correia Pinto e os que, voluntariamente, aderiram participar com ele do empreendimento e viajar para longe de seus lares, centenas de léguas, para fundar uma nova povoação, tinham muita coragem e determinação!
Não é preciso vê-los como heróis. Havia interesses envolvidos. A façanha do empreendimento para a fundação de Lages não foi um ato de pura lealdade à Coroa portuguesa que queria defender suas possessões. No entanto, foi uma ação de extrema coragem, em busca de um ideal coletivo das famílias que vislumbraram, nos campos de Lages, a sua felicidade, o seu crescimento material, numa região rica em campos e rica em gado selvagem, gado que pastava livremente nos campos ou embrenhado nos capões de mato.
O estabelecimento de uma povoação nos campos de Lages facilitaria o desenvolvimento das fazendas que Correia Pinto já possuía e facilitaria a vida para os fazendeiros – isolados desde os anos 1730 – expostos à sua própria sorte nos rincões serranos, diante da ameaça dos castelhanos que costumavam ocasionalmente “bombear”, espiar os passos da coroa portuguesa, sem contar os ataques dos xokleng, indígenas que habitavam a região e que queriam defender suas terras e seu meio de sobrevivência.
Agora, imagine-se a cena da caravana aproximando-se do local de sua fundação! O Morro do Tributo, ao Norte, testemunhou a passagem da caravana que chegava e se dirigia para um pouco além do rio Caveiras, na região da Chapada do Cajuru, o local escolhido para a primeira tentativa de erguer o povoado de Lages. O Tributo, quieto, escondia na mata os xokleng atônitos, curiosos com o cenário. Era diferente de tudo o que haviam observado nas caravanas de tropeiros, que passavam montados em cavalos que iam e vinham entre Viamão, no Rio Grande, e Sorocaba, em São Paulo. Conseguiam ver homens, mulheres, crianças. Eram famílias! Famílias que se vestiam diferente dos rudes tropeiros que estavam acostumados a ver passar. Lá no fundo de suas almas lhes passava um calafrio. Um sentimento intuitivo gritava no peito a dizer-lhes que, a partir da passagem desta caravana, a vida nunca mais seria a mesma na região.
O português Correia Pinto, ao passar pelo majestoso Tributo, estava um pouco atrás, dando ordens aos escravos que vinham andando, a pé, pela retaguarda. Ergueu os olhos, ajeitou seu chapéu, correu para a frente da Caravana e disse: Esta é a nossa casa! Estes campos e estas matas nos pertencem. Olhem! Saiam de seus carroções e vejam! Observem passo a passo as próximas léguas! Estamos nos Campos das Lagens... Aqui – fazendo um gesto amplo com o braço direito – é as paragens das lagens. Aqui nesta região vamos viver e vamos defender as possessões de nosso grandioso rei. Que Deus o salve.
D. Maria Antônia Rodrigues, sua esposa, havia se colocado em pé, e, segurando-se na frente, em cima do segundo carroção da caravana, com ares confusos de apreensão, cansaço e orgulho, via e ouvia atentamente enquanto Correia Pinto falava. Exausta, almejava o fim da viagem para passar alguns dias de descanso no acampamento escolhido para os trabalhos de erguimento da povoação. Talvez tenha passado alguns dias na casinhola da fazenda mais próxima, que a família já possuía, em companhia de alguns escravos que a protegiam e a serviam, enquanto Correia Pinto permanecia à frente dos marceneiros, pedreiros e do “engenheiro” que viera para construir a igreja e liderar os demais trabalhos como demarcação dos arruamentos, dos terrenos e construção das casas.
Em cerca de quatro léguas (vinte e poucos quilômetros) chegariam à Chapada do Cajuru. Ao andarem as primeiras duas léguas avistaram o Morro Grande e, logo na frente, cruzaram o Rio Caveiras. Era um dia ensolarado e as rodas dos carroções, que no transcurso da viagem deram tanto trabalho ao ferreiro e ao marceneiro, cantavam um hino melancólico, do desgaste. Mas as notas melancólicas eram notas constantes, em tom firme, que marcaram durante toda a viagem a perseverança dos desbravadores portugueses e paulistas, que chegaram sãos e salvos ao “sertam das lagens”, há 250 anos passados.
Ali, na subida da Chapada do Cajuru, D. Maria Antônia Rodrigues viu uma revoada de papagaios charões seguidos por uma revoada estridente de um bando de gralhas azuis.
Correia Pinto ergueu a mão, naquele momento, apontando para o bando de gralhas azuis. Foi quando uma delas se separou das outras gralhas do grupo e alçou, por cima do bando, um voo bem mais alto do que todas as outras aves. Desde então aquela gralha azul especial nunca mais parou de voar.
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
A área do “Marco Zero” de Lages abrigou o Pelourinho, cujo erguimento foi o primeiro ato estabelecido por Correia Pinto como sinal de sua jurisdição e autoridade sobre o lugar, no século XVIII. Em seguida, houve a construção da Câmara Municipal, a da Cadeia Pública e, no século XIX, a do Teatro e a de uma Loja Maçônica.
O “Marco Zero” de Lages foi descaracterizado com o tempo. Não somente o Pelourinho deixou de existir ali, mas também todas as outras construções acima mencionadas.
Atualmente, todo aquele espaço, se não 80% do "Marco Zero”, está debaixo da construção do Colégio Aristiliano Ramos, no Calçadão da Praça João Costa, no centro de Lages. Na área do “Marco Zero” há campo para estudo e entendimento das práticas e representações culturais, bem como o entendimento das representações de poder associadas a um determinado imaginário político de domínio governamental, desde o século XVIII. (O Campo da História. José D’Assunção Barros. 2004).
De uma forma ou de outra aquele espaço, como patrimônio histórico imaterial – imaterial por existir nas memórias que o evocam – deve ser considerado em qualquer das hipóteses de utilização futura daquele sítio. A área, como Patrimônio Histórico da sociedade lageana, precisa ser visibilizada materialmente por meio de um memorial apropriado que inscreva, definitivamente, na história deste município, os diferentes usos, já mencionados, daquele espaço comunitário nos três séculos passados: o Pelourinho, a Câmara Municipal, a Cadeia Pública, o Teatro, a Loja Maçônica e o Colégio Aristiliano Ramos.
Entendemos que nenhuma edificação contemporânea pode se sobrepor historicamente a todos os outros fatos relevantes dos quais aquele espaço foi palco, com diferentes construções estabelecidas em parte dos três séculos, desde o surgimento da sociedade lageana, em 1766. Tal conduta desrespeitaria a formação histórica da sociedade lageana, relegando-a como menos importante do que a história contemporânea ali configurada nas vivências dos sujeitos, considerando apenas uma parcela da sociedade, ou seja, a parcela relacionada ao educandário.
Os 250 anos de Lages é um bom momento para se refletir na importância do “Marco Zero” de Lages referente aos primórdios desta cidade e à sua perpetuação na memória histórica de todos os lageanos. Antes tarde do que nunca!
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
Quando a ocupação dos Campos de Lages e seu Termo começou a se viabilizar, a partir das articulações da Coroa portuguesa, em 1720, na época em que Lisboa mostrou interesse em abrir uma estrada para ligar o Sul pelo interior, através do Sertão de Curitiba, a Capitania de Santa Catarina ainda não existia. No Litoral havia três núcleos habitacionais pequenos: São Francisco, Desterro e Laguna.
A ligação pelo interior era importante pois, a Coroa possuía interesses estratégicos militares e econômicos, em especial, desde o momento em que Portugal funda a Colônia do Sacramento, hoje no Uruguai. A Capitania de S. Paulo conseguiu concretizar este anseio da Coroa portuguesa em 1728, quando Francisco de Souza Faria aceitou a empreitada de abrir esta estrada, por iniciativa do governador de S. Paulo, Antônio da Silva Caldeira Pimentel.
A estrada foi aberta e, como já explicitado em artigo anterior, a partir de sua retificação e aprimoramentos em 1731, pelo paulista Christóvão Pereira, a região passa definitivamente a ser povoada por tropeiros até o amadurecimento da ideia de uma povoação no Sertão de Curitiba, pertencente à Capitania de São Paulo, ideia essa concretizada em 1766 com a chegada da caravana de Antônio Correia Pinto, fundador de Lages.
A ordem era: Estabelecer uma povoação no Sertão de Curitiba para proteger as terras da Capitania de S. Paulo a partir do Rio Pelotas nos Campos de Lages. Correia Pinto de Macedo foi nomeado por Carta Patente de 09 de julho de 1766, para o cargo de Capitão-mor, Regente do Sertão de Curitiba.
Em parte do juramento do Capitão-mor Correia Pinto, constava: “Nenhuma parte daquele Certão emtregarey a peçoa alguma de qualquer estado, grão, dignidade, ou proeminência que seja, senão a Sua Mag. e como meu Rey e Senhor Natural”.
A questão posta é: Quais eram os Termos do Sertão de Curitiba? Os limites do Termo do Sertão de Curitiba eram configurados pelos rios Negro e Iguaçu ao Norte, e, ao extremo Oeste, com o rio Peperi-guaçu (divisa com a Argentina). Ao Sul com o rio Pelotas e rio Uruguai e, a Leste, com a Serra Geral. Isto significava que a partir da fundação de Lages, em 1766, oficializada em 22 de maio de 1771, esta povoação, tendo à frente seu Capitão-mor, possuía jurisdição sobre um vasto “continente”. Junto com os Campos de Palmas, o território da jurisdição da Vila de Lages possuía 72.000 quilômetros quadrados. Para se ter uma ideia da grandiosidade do termo de Lages é interessante lembrar que o estado de Santa Catarina inteiro, hoje, possui uma área de 95.733,978 em km², incluindo nisso o Termo de Lages menos parte dos Campos de Palmas que ficaram para o Paraná na questão de limites, decidida em 20 de outubro de 1916.
Assim sendo, Lages com o seu Termo, consolidado historicamente quando pertencia à Capitania de São Paulo, deu uma gigantesca contribuição para a configuração geográfica que o estado catarinense possui hoje.
Lages é desanexada da Província de São Paulo conforme o Alvará de 09 de setembro de 1820, reproduzido a seguir conforme consta na edição fac similar: Exposição Histórico-Jurídica, de Manoel da Silva Mafra, de 1899:
“Eu EI-rei faço saber aos que este Alvará com força de lei virem, que tomando em consideração, que sendo a Villa de Lages a mais meridional da provincia de S. Paulo, pela grande distancia em que se acha da capital, não póde ser prontamente socorrida com as opportunas providencias,
que a façam elevar-se do estado de decadencia em que se acha, procedida dos respectivos damnos, que os indigenas selvagens seus vizinhos têm feito no seu territorio e que, reunindo-se ao governo da Capitania de Santa Catharina, donde pode mais facilmente ser auxiliada, se tornarão menos atrevidos aquelles selvagens e talvez se sujeitem e se retirem, deixando os colonos com a segurança precisa para se aproveitarem da grande fertilidade das terras do Termo da mesma Villa, regadas por muitos rios e debaixo de um clima temperado e sadio; Hei por bem desannexar a mencionada Villa de Lages, e todo o seu Termo da província de S. Paulo e incorporal-a na Capitania de Santa Catarina, á cujo governo ficará d'ora em diante sujeita: Pelo que mando, etc. Dado no Palacio do Rio de Janeiro, aos 9 de Setembro de 1820. Rei com guarda. – Thomaz Antonio de Villa Nova Portugal”.
Quando o Paraná contestou os limites do Estado catarinense no século XIX, “Lages e todo seu Termo” já haviam sido transferidos para a Província de Santa Catarina. Como a anexação foi por ordem real, era apenas uma questão de se provar historicamente o que significava, originalmente, o “termo de Lages”. Isto foi feito e Santa Catarina teve ganho de causa em 1916, com acordo firmado entre os dois Estados, concordando ambos estes Estados que apenas parte dos Campos de Palmas, no Extremo Oeste, pertenceria ao estado do Paraná.
A ANEXAÇÃO DO TERMO DE LAGES A SANTA CATARINA
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
Qual a importância de Lages e seu Termo para a Capitania de Santa Catarina, quando Lages ainda pertencia à Capitania de São Paulo? Veja a transcrição ipsis literis das palavras do famoso Paulo Joze Miguel de Brito, Ajudante de Ordens do governador catarinense, em 1816:
“A incorporação da Vila de Lages e seu termo à Capitania de Santa Catarina é uma medida utilíssima e inteiramente se conforma com as providências dadas pela Carta Régia de 5 de novembro de 1808 dirigida ao Capitão General de São Paulo. Todo aquele termo confina com a fronteira oeste de Santa Catarina em muito menor distância da Capital desta do que da Vila de Curitiba, e ainda menor da cidade de São Paulo; por conseguinte é muito mais cômodo e mais interessante para os habitantes das Lages e seu termo terem todos os seus recursos domésticos, administrativos e políticos na Ilha de Santa Catarina, do que na Curitiba ou em São Paulo”.
Qual era a motivação de Paulo Joze Miguel de Brito? Certamente não era a preocupação que poderia ter com a Vila de Lages por estar longe de São Paulo e desassistida de qualquer providência da capital paulista. Havia outros interesses e ele mesmo deixa claro, em 1816, em suas memórias:
“A incorporação da Vila das Lages à Capitania (Santa Catarina) é realmente indispensável, e sem ela nunca poderá prosperar a mesma Capitania (Santa Catarina); as razões são obvias, e por isso as omito; porém há ainda outra medida, que não é menos útil, e vem a ser elevar à categoria de Capitania Geral a Capitania de Santa Catarina, assim como há poucos anos se elevou a do Rio Grande, mas não ouso propor esta medida para já, não por que a de Santa Catarina deixe de ter os requisitos precisos para aquela categoria, mas sim por que esta seria agora onerosa ao Estado, com os ordenados de um Capitão General, de uma Junta da Fazenda e dos Magistrados correspondentes, para o que a Capitania não tem rendimentos suficientes por ora, se bem que fácil seria fazer com que os tivesse”.
Fica claro que Miguel de Brito vislumbrava ganhos econômicos e almejava a mudança do status de Capitania para Capitania Geral, com a anexação do Termo de Lages à Capitania de Santa Catarina. Quatro anos depois, em 09 de setembro de 1820, Lages e seu Termo são, finalmente, anexados à Capitania de Santa Catarina.
NOME DE “BATISMO” DA CIDADE: Afinal, é Lages com “G” ou com “J”?
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
A região dos Campos de Lages, mesmo antes da chegada dos fundadores da povoação, em 1766, já era referida em sua grafia, em todos os documentos da época, desde a década de 1740, como “Campos das Lagens”, “Paragem das Lagens”. Sempre se escreveu Lages com a letra “G”. Oficialmente, os documentos da época apresentam o batismo de Lages com “G”. Nos documentos da fundação oficial, em 22 de maio de 1771, consta a fundação do povoado de “Villa de Nossa Senhora dos Prazeres do Sertão das Lagens”. E, depois disso, muitas cartas oficiais se referiam ao lugar simplesmente como “Sertão das Lagens” e “Villa das Lagens”. De 1740 até 1943 nunca havia se grafado o nome da cidade com “J”.
No ano de 1816, Paulo José Miguel de Brito, considerado o primeiro historiador catarinense, escreveu em um texto, que mais tarde se tornou um livro – “Memória Política sobre a Capitania de Santa Catarina” – as seguintes palavras: "Proporei... a renovação da estrada do sertão para comunicar a beira-mar e o sul do Estreito com a indicada “Vila de LAGES”. E, em seu texto, usou várias vezes Lages com “G”.
No Alvará de incorporação de Lages à Capitania de Santa Catarina, datado de 09 de setembro de 1820, nas palavras iniciais se declara: “Eu, El-rei, faço saber aos que este Alvará com força de lei virem, que tomando em consideração, que sendo a Villa de Lages a mais meridional...”.
Também o mais famoso e importante historiador catarinense do século XIX, Manoel Joaquim de Almeida Coelho, em todas as suas citações e comentários que faz sobre Lages, escreve sempre LAGES com “G”.
E para completar temos Manoel da Silva Mafra que, na verdadeira “bíblia” da história jurídica de Santa Catarina, “Exposição Histórico-Jurídica”, de 1899, em todas as citações e comentários sobre Lages, sempre escreve Lages com “G”.
Assim, ao contrário do que pensam erroneamente alguns jornalistas e escritores, a grafia antiga, original, o nome de batismo de LAGES é com “G” e não com “J”. A grafia LAJES com “J” foi um uso mais recente e temporário que acabou gerando confusões a respeito da grafia correta, mas que se referia à pedra laje e não deveria ser confundido com o nome de batismo da cidade.
Isso causou um equívoco e alguns jornalistas e pesquisadores, hoje em dia, quando escrevem sobre os primórdios de Lages acabam escrevendo equivocadamente Lages com "j" associando esta letra com a antiguidade da história de Lages.
Sendo assim, haja vista que o "J" predominou só recentemente entre os anos de 1943/1960, o melhor é esquecer sempre o "J" na grafia de Lages e escrever LAGES sempre com "G”, uma vez que o tempo consagrou o uso de LAGES com “G” e não com “J”.
Licurgo Costa, o mais importante historiador lageano, na sua obra “O Continente das Lagens” (1982) esclarece a origem desta confusão da grafia da cidade:
“Pelo vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Academia Brasileira de Letras em 12 de agosto de 1943 e alterado pelo Acordo Ortográfico de 1945, o nome passou a ser LAJES, que foi, com alguma relutância, adotado pelo Governo Municipal. Mas (passados menos de vintes anos) o Prefeito Vidal Ramos Júnior assinou Decreto, em 1960, restabelecendo o topônimo de LAGES com G”.
Afinal, amigos, LAGES é o nome de batismo da cidade catarinense. Lajes é o plural do nome de uma pedra!
CRONOLOGIA HISTÓRICA DE LAGES – DE 1675 A 2016
Cláudio Silveira
(Artigo publicado originalmente na Ed. 78 da Revista História Catarina – 2016)
Anos 1600
1675 – Manoel da Silva Ribeiro e seus filhos Inácio e Pedro da Silva Ribeiro obtiveram uma Sesmaria de 500 milhões de metros quadrados, nos campos de Lages.
1690 – As famílias Pires e Camargo, devido a constantes desavenças entre ambas, deixam São Paulo, por ordem de D. Luís Álvares de Castro, Marquês de Cascais, e se estabelecem na região dos Campos de Lages.
Anos 1700
1709 – Em 03 de novembro foi criada a nova Capitania Real de São Paulo e Minas do Ouro.
1711 – Em 11 de julho a Vila de São Paulo foi elevada à categoria de cidade.
1720 – Lisboa negocia com Bartolomeu Paes, com o fim de abrir uma estrada subindo a Serra
Geral, passando pelos campos de Lages, mas Lisboa não aceita as exigências de Bartolomeu.
1728 – Francisco de Souza Faria aceita, nesse ano, abrir a estrada dos Conventos, por iniciativa do governador de São Paulo, Antônio da Silva Caldeira Pimentel, e Lisboa aceita as suas condições.
1731 – Cristóvão Pereira retifica o traçado e melhora a trafegabilidade da Estrada dos Conventos, aberta por Francisco de Souza Faria.
1738 – Cristóvão Pereira de Abreu fez a ligação direta Lages-Vacaria.
1740 – Cristóvão Pereira de Abreu retifica, novamente, o traçado do caminho Curitiba-Viamão,
abandonando o trecho dos Conventos e rumando direto para o Sul, pelo Pelotas, entrando nos campos de Vacaria.
1741 – A denominação “Campos de Lagens” e “Paragem das Lagens” e “As Lagens” aparece
pela primeira vez em um documento, um Inquérito com data deste ano. (Note-se a grafia, Lagens com G e não com J).
1748 – Pela Carta Régia de 09 de maio a Capitania de São Paulo foi suprimida. Deixa de existir por questões políticas.
1764 – Em 14 de dezembro D Luiz Antônio de Souza, o Morgado de Mateus, foi nomeado, em Lisboa, para ser o governador de São Paulo, que seria restaurada como Capitania no ano seguinte.
1765 – O Marquês de Pombal resolve restaurar a Capitania de São Paulo em 04 de fevereiro e anuncia a nomeação do “Morgado de Matheos”, D. Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão para governador.
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Após chegar a Santos, no dia 23 de julho desse ano, Antônio Correia Pinto de Macedo é sabatinado e designado para preparar a caravana rumo ao Sertão de Curitiba, onde deveria fundar a Vila de Lages.
1766 – Em 09 de julho o Morgado de Mateus concede a Antônio Correia Pinto de Macedo a patente de Capitão-Mor do Sertão de Curitiba.
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Dia 07 de agosto é expedida a ordem para estabelecer a povoação de Lages.
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Dia 15 de agosto a caravana de Correia Pinto parte de São Paulo, com cerca de 10 famílias e escravos, em direção aos Campos de Lages.
1766 – Dia 22 de novembro de 1766 Correia Pinto chega a Lages para os trabalhos de fundação do povoado.
1770 – Em 06 de setembro de 1770 ocorre, oficialmente, a criação do município de Lages.
1771 – Em 22 de maio Correia Pinto reuniu os habitantes da povoação e instalou, formalmente,
a vila de Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens, declarando-a fundada, ocasião em que lavrou e assinou um termo com as vinte e quatro pessoas presentes. No mesmo dia foi levantado um pelourinho como sinal de jurisdição e autoridade.
1771 – Em 08 de setembro ocorre a posse dos vereadores e funcionários nomeados.
1774 – É inaugurada a então modesta Igreja Matriz de Lages.
1776 – Em 20 de julho de 1776 foi expedida ordem, por Martim Lopes Lobo, para os habitantes
das fazendas construírem casas na Vila de Lages. O não cumprimento implicaria em severas penas.
1780 – É retirado o Registro de São Jorge do Passo do Rio Canoas, administrado contra a vontade de Correia Pinto pelo governo do Rio Grande do Sul. A questão de limites ficou resolvida. O Rio Pelotas seria, então, o limite definitivo entre a Capitania de São Paulo e o Rio Grande de São Pedro (Rio Grande do Sul).
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Em 09 de janeiro, Antônio Correia Pinto entrega os paramentos e demais objetos da Igreja, que ele havia trazido de São Paulo em 1766. Assim, foi oficialmente criada a Freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens.
1783 – Em 28 de setembro o capitão Antônio Correia Pinto de Macedo morreu, na vila de Lages, e foi sepultado no dia seguinte, dentro da igreja matriz.
1783 – Bento do Amaral Gurgel é nomeado capitão-mor de Lages.
1787 – O governador da Capitania de Santa Catarina, Pereira Pinto, por ordem do Vice-Rei D. Luiz de Vasconcelos, encarrega Antônio José da Costa – à frente de doze homens armados, doze escravos e com sete mulas cargueiras – de transpor a Serra Geral por meio de uma estrada, ligando Desterro a Lages.
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De 11 de janeiro a 05 de agosto o Alferes Antônio José da Costa e seus homens "descobrem" o caminho de ligação entre a Ilha de Santa Catarina e Lages e, em 08 de agosto, o Alferes profere a célebre frase: "O lugar é próprio para o aproveitamento de uma quantidade tão prodigiosa de pinheiros".
1788 – Em 14 de outubro de 1788 a estrada de ligação Ilha-Serra é arrematada pela importância de nove contos e seiscentos mil réis, pagos pelas autoridades da Província a Antônio José da Costa e ao Capitão Antônio Marques Arzão.
Anos 1800
1803 – Falece João Damasceno de Córdova, o primeiro músico compositor de Lages.
1820 – É expedido Alvará, em 09 de setembro, anexando o território de Lages à Capitania de Santa Catarina. O ato é entendido como uma restituição de território, pois "pertencia de direito a Santa Catarina".
1820/21 – Nasce em Lages (História oral – Ezírio Rodrigues Nunes. 1822-1916), Ana de Jesus Ribeiro – Anita Garibaldi. Não consta a página de registro na Igreja. (Costa, Licurgo. O Continente das Lagens. 1982).
1822 – Nasce em Lages Manoel Ribeiro, irmão de Anita Garibaldi. Consta em documentos de batismo na Igreja de Lages.
1824 – Nasce Sissilia (sic) em Lages, irmã mais nova de Anita Garibaldi. Consta em documentos de batismo na Igreja de Lages.
1835 – Em 20 de novembro irrompe, na Província do Rio Grande do Sul, a “Revolução Farroupilha”.
1836 – Lages passa a ter – através da Lei nº 51, do dia 17 de junho desse mesmo ano – o primeiro de uma série de “Códigos de Posturas da Câmara Municipal”, instituídos ao longo do século XIX, os quais dispunham sobre os mais variados aspectos da vida comunitária.
1838 – Lages é incorporada à República de Piratini (República Farrapa).
1839 – Proclamada a República rio-grandense em Lages com o comparecimento da população.
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Em 21 de março é publicado um manifesto de Bento Gonçalves, dirigido aos lageanos, denominado “Lageanos”.
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Em 29 de julho é proclamada a República Catarinense com a participação de 100 lageanos.
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Em 15 de novembro ocorre a queda de Laguna, diante das forças imperiais.
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Em 14 de dezembro Teixeira Nunes derrota, no passo de Santa Vitória, em Lages, a divisão Imperial comandada pelo Brigadeiro Francisco Xavier da Cunha.
1840 – Em 05 de janeiro, o primeiro juramento às Forças Farroupilhas, feito em 1938, é revalidado na sede da Câmara de Vereadores de Lages.
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Em 12 de janeiro acontece o combate no Arroio Forquilha, nos campos de Lages de Curitibanos, onde morrem centenas de homens gaúchos, lageanos e homens das forças imperiais.
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Em 02 de abril acontece a retomada de Lages pelas forças imperiais brasileiras.
1841 – No início desse ano a cidade de Lages estava livre dos resquícios da Guerra Farroupilha.
1845 – Em fevereiro desse ano é selada a paz em Poncho Verde, no Rio Grande do Sul, depois de negociações conduzidas pelo General Luiz Alves de Lima e Silva e por Davi Canabarro.
1848 – O Padre Camilo pede à Câmara para marcar data para a bênção do novo cemitério, localizado à esquina das atuais Ruas Cel. Córdova e Lauro Müller, próximo ao atual Colégio Santa Rosa de Lima. Este cemitério foi retirado nos anos vinte.
1858 – É criada a Comarca de Lages pela Lei Provincial nº 444, de 02 de março.
1860 – Lei provincial no 500, de 25 de maio, eleva Lages à categoria de cidade.
1869 – Emancipado de Lages, em 11 de julho, o município de Curitibanos.
1881 – Emancipado de Lages, em 30 de março, o município de Campos Novos.
1884 – Lages se distingue de Santa Catarina pelo número de alforrias concedidas por particulares. Somente nesse ano foram 49.
1886 – Emancipado de Lages, em 28 de agosto, o município de São Joaquim.
1888 – Dia 20 de junho é anunciado, em Lages, na fazenda Negreiros, o fim da escravidão no Brasil.
1889 – Chegam a Lages, dia 20 de novembro, José Joaquim de Córdova Passos e João José Theodoro da Costa, com a notícia da Proclamação da República.
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Em 24 de novembro é criado em Lages o Clube Republicano.
1892 – Chegou a Lages, nos primeiros dias de 1892, Henrique Neuhaus, o conhecido Frei Rogério, da Ordem Franciscana. Teve embates com o Monge José Maria no período da Guerra do Contestado.
1893 – Forças Federalistas Lageanas sob o comando do Coronel Nepomuceno Costa estavam em ação, conforme proclamação assinada, no dia 23 de setembro, pelo coronel José Joaquim de Córdova Passos.
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Em 10 de novembro Gumercindo Saraiva chega a Lages, com seu exército de 1.600 homens, e acampa perto do “Morro do Juca Prudente”.
1894 – Em 26 de agosto o “Capitão Pessoa” deixa sinistra memória em Lages ao prender os acusados de participação no levante contra o governo, na Revolução Federalista. Mulheres e crianças morreram nas investidas para prendê-los. Idosos foram obrigados, junto com os demais, a fazer o trajeto, a pé, mas a poucos quilômetros da cidade foram todos assassinados.
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Em 28 de setembro assumiu o Governo do Estado o Dr. Hercílio Luz, em cujo quatriênio foi reaberta a estrada de ligação de Lages com a capital, estrada essa que estava abandonada.
1896 – Foi criado o Clube Literário e Recreativo 10 de Julho, um clube sem conotação política.
1897 – Inaugurada, em 08 de abril, a primeira linha do Telégrafo Nacional para Lages.
1898 – O lageano Felipe Schmidt assume o Governo de Santa Catarina, permanecendo nesse cargo até 1902.
Anos 1900
1902 – Inaugurado, neste ano, o Palácio da Municipalidade, prédio da atual prefeitura.
1902 – O lageano Vidal José de Oliveira Ramos assume o governo de Santa Catarina como governador substituto, no período de 1902 a 1905.
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O governador lageano Vidal José de Oliveira Ramos Júnior faz a inauguração simbólica da Ferrovia Florianópolis-Lages, no Estreito, onde haviam sido colocadas as pontas dos trilhos que dali haveriam de alcançar Lages. O projeto nunca se concretizou.
1910 – Eleito pelo voto popular para o quatriênio 1910/1914, Vidal José de Oliveira Ramos assume, pela segunda vez, o governo de Santa Catarina.
1912 – A Estação Experimental de Lages, Epagri, é criada pelo Decreto-Lei nº 9.513, de 03 de abril, sendo inicialmente denominada “Posto Zootécnico Federal de Lages”, tendo como finalidade básica desenvolver pesquisas sobre aclimatação de diversas raças de bovinos, equinos, ovinos e suínos.
1917 – Inaugurado em 10 de novembro o sistema de luz elétrica proveniente da Usina do Salto do Rio Caveiras.
1914 – Pela 2ª vez Felipe Schmidt assume o Governo de Santa Catarina, no quatriênio 1914/1918.
1918 – É fundado, em 22 de setembro, o Clube Cívico Cruz e Souza. Era frequentado mormente por afrodescendentes.
1920 – Fundado o Clube 14 de junho.
1921 – Depois de treze anos de construção, em 25 de dezembro Frei Gabriel Zimmer deu por terminado, com toda a sua decoração, o prédio em estilo gótico da Matriz de Lages.
1922 – Emancipado de Lages, em 04 de outubro, o município de Bom Retiro.
1927 – O lageano Valmor Argemiro Ribeiro Branco assume o governo de Santa Catarina, como governador interino.
1929 – Reassume o governo do Estado, como governador interino, o lageano Valmor Argemiro Ribeiro Branco.
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Em 02 de agosto o Papa Pio XI nomeou o primeiro Bispo de Lages, Dom Daniel Hostin.
1930 – Nesta década é melhorada a ligação com a capital Florianópolis e o carreteiro e o tropeiro começam a sofrer concorrência do caminhão.
1932 – Como governador interino assume o governo do Estado o lageano Cândido de Oliveira Ramos, no período de 1932/1933.
1933 – Aristiliano Laureano Ramos, lageano, assume o governo do Estado de Santa Catarina, como interventor, até 1934.
1935 – O lageano Nereu Ramos é eleito governador de Santa Catarina, ocupando este cargo de 1935 a 1937.
1937 – Reassume o governo do Estado, como governador interino, de 1937 a 1945, o lageano Nereu Ramos.
1940 – Em 24 de junho o “Colégio Agrícola Caetano Costa” foi fundado, tendo seu funcionamento inicial na cidade de Lages, no local onde hoje está situado o Centro de Ciências Agroveterinárias – CAV. Em 1979 este Colégio foi transferido para o município de São José do Cerrito, onde funciona até os dias de hoje.
1942 – O Departamento Estadual de Estatística e Publicidade declara haver, em Lages, 28 serrarias.
1945 – Dia 08 de julho é realizada a primeira Assembleia Geral ordinária para a eleição da primeira diretoria da Associação de Produtores de Madeira da Região Serrana. Foi eleito presidente Oswaldo Vieira de Camargo e vice-presidente Víctor G. Rosa.
1947 – O Cine Teatro Marajoara é inaugurado, em novembro. Comportava apresentações teatrais e cinematográficas. A nova casa, em estilo Art Déco, um famoso traçado arquitetônico dos cineteatros do Rio de Janeiro e São Paulo, foi admirada e aplaudida por todo o território nacional.
1949 – Falece, com 120 anos, Euzébia Leite, escrava de José Manoel Leite, que participou na Guerra dos Farrapos.
1958 – A “Olinkraft – Celulose e Papel Ltda.” Compra a “Companhia de Papel Itajaí Ltda.” e inicia suas operações na localidade de Encruzilhada, que se transformaria, em 20 de setembro de 1959, no novo distrito de Lages: Otacílio Costa.
1959 – Começa a história da UNIPLAC, em julho de 1959, com a Associação Catarinense de Cultura (ACC) declarada de utilidade pública no mês de novembro desse mesmo ano. A ACC tinha como finalidade a fundação e manutenção de estabelecimentos de Ensino Superior e de Ensino Médio – Escolas Técnicas do Comércio. Assim, no tempo de sua constituição, foram fundadas pela ACC, em Lages, as Faculdades de Ciências Econômicas e de Ciências Contábeis e Jurídicas – FACEC –, com aula inaugural em 06 de abril de 1964.
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Nesse ano de 1959, em 10 de agosto, foi fundado o primeiro Centro Acadêmico, denominado Centro Acadêmico “08 de Maio”.
1961 – Emancipado de Lages, em 17 de julho, o município de Campo Belo do Sul, instalado em 03 de dezembro.
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Emancipado de Lages, em 17 de julho, o município de Anita Garibaldi, instalado em 04 de dezembro.
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Emancipado de Lages , em 07 de dezembro, o município de São José do Cerrito, instalado em 30 de dezembro.
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Deste ano até 1966 assume o governo de Santa Catarina o lageano Celso Ramos.
1966 – A FACEC teve seus cursos de Ciências Econômicas e Ciências Contábeis efetivamente implantados no ano de 1966.
1969 – No segundo trimestre desse ano o setor de madeira de pinho “entrou em crise” com o quase desaparecimento da “procura” e queda nos preços. Havia madeira mas não havia compradores.
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A Papel e Celulose Catarinense – PCC – começa a operar em Lages, no distrito de Correia Pinto.
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Nesse ano ocorreu a visita do General Sílvio Pinto da Luz a Lages.
1969/1989 – Nesse período de vinte anos Lages passa pela sua pior crise econômica devido ao fim do ciclo da madeira de araucária.
1979 – No dia 05 de abril, o Ministro do Exército, acolhendo proposta da Secretaria Geral do Exército, resolve “dar ao 1º Batalhão Ferroviário, com sede em Lages/SC, a denominação histórica de ‘BATALHÃO BENJAMIN CONSTANT’, nos termos dos Artigos 1 e 2 da Portaria no 295 – GB, de 20 de agosto de 1968”.
1999 – O 1º Batalhão Ferroviário teve sua denominação alterada para 10º Batalhão de Engenharia de Construção.
Anos 2000
2000 – Em 28 de março o Colégio Agrícola “Caetano Costa” passou a se chamar Centro de Educação Profissional (CEDUP) Caetano Costa.
2011 – É eleito para o quatriênio 2011/2014, e assume o governo do Estado de Santa Catarina, o lageano Raimundo Colombo.
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Instalado o primeiro campus do Instituto Federal de Santa Catarina – IFSC – na Serra Catarinense. A missão do IFSC é desenvolver e difundir conhecimento científico e tecnológico, formando indivíduos capacitados para o exercício da cidadania.
2016 – Instalado em Lages o “Orion Parque” – um Parque Tecnológico para o desenvolvimento de tecnologias que darão suporte a empresas que venham a se instalar na cidade. Abriga empresas de Tecnologia da Informação (TI) e Biotecnologia.
2016 – Lages completa 250 anos de fundação.
Edson Ubaldo*
(Palestra proferida em 22 de maio de 2017, em evento patrocinado pelo IHGLages)
I – OS TRÊS MONGES
No final do século XIX, o monge João Maria de Jesus, munido de um cajado e de um gorro de couro de jaguatirica, percorria o planalto e os sertões catarinenses, benzendo, rezando, batizando e fazendo curas. Como nada cobrava e nada aceitava, passou a ser venerado pelo povo inculto daqueles interiores bravios, onde os padres raramente apareciam e nada faziam de graça. Por sua linguagem acastelhanada - seria um andarilho de origem levantina chamado Anastás Marcaf - foi tomado como a reencarnação do monge piemontês Giovani Maria d'Agostini, desaparecido anos antes com fama de santidade na região, crença que ele não desmentia.
Seu desaparecimento sem deixar rastros, por volta de 1907, criou uma lacuna de fé e saudade nas famílias caboclas desamparadas pelo catolicismo, dando ensejo à atuação de novos benzedores que logo perdiam prestígio, deixando campo aberto a quem tivesse carisma para impor-se nas crenças religiosas e superstições populares.
Nesse vácuo de lideranças surge em Campos Novos, na fazenda do Coronel Francisco Ferreira de Almeida, com os mesmos trajes do antecessor, um novo monge, com o nome de José Maria de Agostinho, apresentando-se como irmão daquele. Diz-se que, em verdade, seria um desertor da Polícia do Paraná, de nome Miguel Boaventura de Lucena, fugido de Palmas para escapar ao cumprimento de pena por crime de estupro. Por conta de algumas supostas curas, sua fama logo se espalhou, reavivando a crença em João Maria, a essa altura já promovido a santo por aqueles que o conheceram.
II – TAQUARUÇU DO BOM SUCESSO
A convite do Coronel Henriquinho de Almeida, adversário do Coronel Francisco Albuquerque, Intendente de Curitibanos, José Maria, acompanhado por dezenas de adeptos, mudou-se para este município, estabelecendo-se em Taquaruçu do Bom Sucesso, onde casebres foram toscamente erguidos e uma nova ordem foi imposta com procissões rezas diárias e sessões de bênçãos e curas. Alfabetizado José Maria reunia as pessoas e lhes lia trechos do cancioneiro anônimo “História do Rei Carlos Magno e dos Doze Pares de França”. Como o caboclo sempre foi exímio cavaleiro, o monge criou uma guarda de honra com a mesma denominação, porém composta por vinte e quatro ginetes, pois no seu entendimento a palavra “par” significava “dois”.
No local já estava estabelecido há muitos anos, com uma bodega, Praxedes Gomes Damasceno que, de imediato, aderiu à liderança de José Maria, mesmo sendo compadre do Coronel Albuquerque. Este, temendo que o ajuntamento de tantas pessoas fosse uma artimanha de seu adversário para apeá-lo do poder pela força, remeteu desesperados telegramas ao Governador Vidal Ramos, que então enviou um destacamento da Força Pública do Estado para resolver a situação. Sob o comando do Capitão Januário Côrte, sem usar de violência, a polícia convenceu o monge e seus adeptos a se dispersarem.
III – RETIRADA PARA IRANI - O COMBATE
A maioria seguiu José Maria até as matas do Irani, onde pretendiam recomeçar suas vidas. Ao saber disso o Governo do Paraná entendeu que os caboclos lá estavam a mando das autoridades catarinenses, com o objetivo de invadir aquele território, disputado por ambos os estados. O Comandante da Força Pública do Paraná, Coronel João Gualberto Gomes de Sá, liderou um destacamento para expulsar os ditos invasores. Levava um cargueiro de cordas para conduzir à Curitiba, amarrados, os supostos violadores de suas pretensas terras.
Alguns moradores da região apresentaram-se como intermediários para evitar derramamento de sangue, como o fazendeiro Domingos Soares e João da Costa Varella, mas João Gualberto foi irredutível: rendição incondicional ou ataque. José Maria mandou-lhe um bilhete dizendo que não desejava o confronto, mas, “se for preciso, eu brigo e dou prejuízo”. Na noite que antecedeu ao ataque o monge reuniu seus homens e declarou: “sinto que vou morrer na peleia, mas dentro de um ano eu ressuscito e volto à frente de um exército de anjos”. O combate, travado em 22 de outubro de 1912, foi ferrenho. A tropa oficial subestimou a coragem dos fanáticos e acabou desbaratada. José Maria tombou, mas levou consigo o Cel. João Gualberto.
IV – RETORNO A TAQUARUÇU
Os sobreviventes, liderados por Praxedes Gomes Damasceno, enterraram o monge numa cova rasa coberta com tábuas para facilitar-lhe a ressurreição e retornaram a Taquaruçu. Aos poucos a vida miserável que levavam voltou ao normal. A bodega foi reaberta e as desconfianças do Intendente também. Ao buscar uma carga de víveres em Curitibanos, Praxedes caiu morto numa emboscada dos homens do Coronel Albuquerque, seu compadre, que temia a volta do movimento fanático.
Nas proximidades de Butiá Verde, ao final de 1913, no riacho de lavar roupas da fazendinha de Euzébio Ferreira dos Santos, sombreado por frondosa caneleira, sua neta Teodora afirma ter visto e ouvido José Maria no alto da árvore, ordenando que todos abandonassem seus teres e fossem construir a “cidade santa” de Taquaruçu. A notícia espalhou-se como rastilho de pólvora. Os caboclos, liderados por Euzébio e pela “virgem” Teodora, deixaram tudo para trás e dirigiram-se ao reduto, onde a antiga organização de José Maria, inclusive os “Doze Pares de França”, que eram vinte e quatro, foi restabelecida.
Proclamou-se a “Monarquia Sul Brasileira”, tendo como Imperador “Dom” Manoel Alves de Assumpção Rocha, um fazendeiro amigo de Euzébio que aderira ao movimento. Agora, porém, além das formas, procissões e orações, os caboclos, sob as novas lideranças de Elias de Moraes e Francisco Paes de Farias, o “Chico Ventura”, adestravam-se para a II Guerra Santa de São Sebastião. Venuto Baiano foi nomeado “comandante de briga”. Os mais valentes e hábeis em armas formaram o “piquete xucro”, encarregado de arrebanhar gado e mantimentos nas fazendas e armazéns da região, bem como atacar estações de trem. Qualquer resistência era respondida com assassinatos, incluindo-se entre as vítimas mulheres e crianças.
O movimento espalhou-se, levando o terror ao Planalto Norte catarinense, a partir de diversos redutos formados por gente de toda espécie: posseiros escorraçados de suas terras pela Lumber e pela Brazil Railway, a quem o governo doara quinze quilômetros ao lado de cada trilho da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, peões de fazenda e pequenos agricultores sem esperança, foragidos da justiça, crentes fanáticos de “São João Maria” e “São José Maria” e até mesmo pequenos fazendeiros e comerciantes perseguidos pelos coronéis aos quais se opunham.
V – O ATAQUE A TAQUARUÇU
As autoridades da região, ou seja, os donos de vastas terras que apoiavam o partido do governo do estado, entraram em pânico, exigindo a intervenção do Exército Nacional. Os mais importantes fugiram para Lages ou para o litoral, deixando suas propriedades a cargo de capatazes e peões, muitos dos quais bandearam-se para os redutos, engrossando o movimento jagunço.
Albuquerque pressiona seu compadre, o Governador Vidal Ramos, que dá ciência dos fatos às autoridades militares e estas decidem agir. Forças do Exército e da Polícia catarinense se unem para atacar Taquaruçu, seguindo plano traçado pelo Secretário-Geral do Estado, Dr. Lebon Régis, a ser executado a 28 de dezembro de 1913. O ataque partiria simultaneamente de três lados: do Norte, vindo de Caçador pela localidade de Liberata, sob o comando do Capitão Adalberto de Meneses; do Sul, partindo de Herval (hoje Joaçaba) via Campos Novos e Espinilho, sob o comando do Capitão Esperidião; e do Leste, saindo de Curitibanos, sob o comando do Capitão Euclides de Castro.
Enquanto a oficialidade e as tropas, muitas vindas de estados distantes, não tinham conhecimento da geografia, da topografia, das matas e dos ínvios caminhos que cortavam a região, os nativos que integravam os redutos nela se movimentavam com naturalidade e segurança. Seus “bombeiros”, como eram denominados os espias, estavam por toda parte acompanhando e informando aos chefes cada movimento das tropas.
Uma vanguarda avançada emboscou o Capo Adalberto, que se retirou às pressas, abandonando armas e víveres que reforçaram o arsenal jagunço; os civis que acompanhavam o Capo Esperidião fugiram nas proximidades do Espinilho, forçando-o a retroceder para Campos Novos com seus 60 soldados; o Capo Euclides de Castro, da milícia catarinense, chegou a atacar o reduto mas seu pequeno contingente foi rechaçado pela artilharia cabocla.
Feridos em seus brios, os militares organizaram nova expedição, composta por 750 homens de diversos batalhões e regimentos do Exército, reforçados por um contingente da Força Pública de Santa Catarina, sob o comando geral do Tenente-Coronel Aleluia Pires. A 8 de fevereiro de 1914 a artilharia iniciou o ataque: bombas e granadas caíram sobre o “quadro santo” incendiando choças e destroçando corpos, a maioria de velhos mulheres e crianças.
Chica-Pelega, a heroína do Taquaruçu a quem os chefes entregaram o comando do reduto antes do combate, tentou proteger estes desvalidos até tombar com o peito estraçalhado por uma granada. Os poucos combatentes restantes estavam fora do reduto tentando envolver os soldados, a quem convidavam para “pelear a ferro branco”. A resposta partiu do cano dos fuzis e metralhadoras, silenciando os provocadores.
No dia seguinte, 9, o Capitão Vieira da Rosa e o Tenente Izaltino Pinho, atirando nos últimos resistentes, entraram no que restava do reduto, onde pedaços de corpos espalhavam-se por todos os lados. Esses macabros destroços, reunidos aos cadáveres recolhidos na periferia, arderam sob enorme fogueira que por horas iluminou a noite da “Cidade Santa do Taquaruçu do Bom Sucesso.” Nas volutas da fumaça subiu a alma de Chica-Pelega para encontrar a de “São” José Maria no reino encantado de São Sebastião.
VI – MARIA ROSA COMANDA CARAGUATÁ
As forças militares rejubilaram-se com a vitória que lhes pagava a humilhação da derrota anterior, sem se darem conta de que os sertanejos, prevendo o ataque e a impossibilidade de resistir, desde o mês anterior promoviam a mudança da maioria dos moradores para o reduto de Caraguatá, mais ao Norte, situado em terras do “imperador” Assumpção Rocha, onde já havia muitos crentes estabelecidos. No Taquaruçu ficaram somente alguns piquetes para retardar o avanço das tropas.
No Caraguatá, em poucos dias os toscos casebres contavam-se às centenas. Ali imperava a carismática “virgem” Maria Rosa, menina franzina, filha de Elias de Souza, o “Eliasinho da Serra”, lavrador originário da Serra da Esperança. Maria Rosa, porta-voz de José Maria, de quem recebia ordens encerrada num quarto escuro, previra o ataque a Taquaruçu - o que não era difícil diante das informações dos “bombeiros” - e ordenara a mudança para Caraguatá, salvando as vidas da maioria dos combatentes, cujo número, neste reduto, ascendia a 5.000.
A imensa e aguerrida força cabocla, secundada por reforços dos novos redutos que se multiplicavam por toda a região, demandou providências militares imediatas. Organizou-se uma expedição de tropas do Exército e da Polícia, sob o comando do Tenente-Coronel Gameiro, que a 9 de março avançou rumo ao reduto. Com a experiência de Taquaruçu, os combatentes fanáticos, a esta altura mais guerreiros que crentes, valeram-se das informações de seus bombeiros e não deram oportunidade a que as forças legais assestassem sua poderosa artilharia. Conhecedores do terreno, postaram-se em posições privilegiadas e envolveram a soldadesca oficial. Esta, cercada por todos os lados, obrigou-se à retirada sob cerrado fogo, contando mortos e feridos.
A derrota dos “peludos”, assim chamados os soldados do governo, animou os “pelados”, como eram apodados os jagunços, cujo cabelo raspado os identificava como “irmãos” da “santa religião” que lhes prometia o paraíso na terra, representado por rios de leite e mel e barrancos de cuscuz, benefícios que nunca apareceram.
VII – A EXPEDIÇÃO MESQUITA
A derrota mexeu com os brios dos militares, levando o Governo a agir com energia. Já no final do mês, agora sob o comando do General Carlos Frederico de Mesquita, veterano de Canudos, três colunas de 500 homens cada uma aportaram à região. Os membros da Polícia foram dispensados, destarte federalizando-se a luta. Contudo, os oficiais e soldados desta nova expedição, vindos do Rio de Janeiro, da Bahia e de outros estados, em geral mal equipados, depararam-se com sérios problemas: o clima frio, as florestas inexpugnáveis e o inimigo invisível que os fustigava do alto das imbuias e pinheiros.
O medo paralisou-os e o Galo Mesquita encontrou saída na contratação dos serviços do famoso caudilho Fabrício Vieira, Coronel da Guarda Nacional, que contava com um piquete de 60 “vaqueanos”, caboclos aguerridos que conheciam a região tão bem quanto os jagunços. Esta tropa formou a vanguarda dos militares, sendo sempre a primeira a entrar na mata cerrada onde se acoitavam os inimigos.
VIII – CEL. FABRÍCIO VIEIRA ENTRA NA BRIGA
Manoel Fabrício Vieira nasceu em Vacaria-RS, em 8 de outubro de 1865, filho natural do fazendeiro Isaac Fabrício Vieira e de uma criada mulata chamada Hortência Marques de Lima. Reconhecido pelo pai, sentou praça no Exército. Em 1893, no posto de Capitão, integrou as forças que combatiam os revolucionários federalistas. Alto, forte, espadaúdo e inteligente, exímio atirador e espadachim, destacou-se pela coragem e por isso foi chamado como ordenança do Senador Pinheiro Machado.
Terminada a luta, pediu baixa e retornou à terra natal para cuidar dos negócios paternos. Em 1895 foi exaltado ao grau de Mestre na Loja Maçônica “Perseverança”, ainda hoje ativa em Vacaria. Em 1902 foi nomeado Coronel Comandante da 17ª Brigada de Cavalaria da Guarda Nacional por ato do Presidente Campos Salles.
A vida seguia seu ritmo normal nas lides do campo, até que numa Sexta-Feira Santa, durante cerimônia no cemitério local, o jovem filho de importante fazendeiro engraçou-se indevidamente com Francinha, irmã de Fabrício. Este pediu satisfações ao atrevido, mas foi por ele desafiado para um duelo à espada, iniciado de imediato.
O rapaz não era páreo para o experiente veterano da Revolução Federalista e poucos minutos depois tombava morto sobre um jazigo. O fato teve grande repercussão e as juras de vingança dos familiares do falecido tomaram vulto perigoso. Fabrício, então, abandonou Vacaria e dirigiu-se ao Paraná, onde adquiriu vastas terras e fundou a “Fazenda Chapéu de Sol”, à margem direita do Iguaçu, no hoje município de Bituruna, onde criou os filhos Luiz, Maurílio e Huri. Sua mãe já falecera e com a morte do pai para lá levou a madrasta, as irmãs e todos os peões, inclusive seu inseparável primo Enéas Borges dos Santos, que com ele servira em 93 no posto de tenente.
Com a construção da ferrovia, passou a ganhar a vida com o fornecimento de lenha para as fornalhas das locomotivas e dos vapores que singravam o Iguaçu e com a extração, beneficiamento e exportação de erva-mate. Seus numerosos peões e agregados, muitos dos quais egressos da Revolução Federalista, eram bons de tiro e facão. Sua fama de guerreiro valente era conhecida do Rio Grande ao Paraná. Portador da patente de Coronel da Guarda Nacional e conhecendo a região palmo a palmo, constituiu a escolha ideal do Gal. Mesquita para formar a vanguarda das tropas regulares.
Com pleno conhecimento das regras militares, impôs severa disciplina castrense a seu bando, apodado de 59º Batalhão de Caçadores, já que o Exército só contava com 58. Além dos jovens filhos Luiz e Maurílio, comissionados no posto de capitão, seu Estado-Maior contava com o Ten. Enéas e dois capangas especializados em “interrogatório” e “justiçamento” de prisioneiros: Isac Fuá e Salvador Pinheiro, o “Dente de Ouro”, que se dizia sobrinho do Senador Pinheiro Machado.
IX – FIM DA EXPEDIÇÃO MESQUITA
De União da Vitória, o Cel. Fabrício Vieira guiou duas das colunas do General Mesquita até Poço Preto, onde este instalou o Q.G. A terceira coluna partiu da estação de Calmon em direção a Caraguatá, que encontrou abandonado. A 16 de maio as duas primeiras colunas rumaram para Timbó com o objetivo de atacar o reduto de Santo Antônio, mas repentinamente foram alvo de violento ataque jagunço, que ameaçou o próprio Estado-Maior do General. Somente uma carga de baioneta do 7º R.I. conseguiu afastar os atacantes, ensejando a tomada do reduto. Nos dois dias seguintes, 17 e 18, os legalistas enterraram seus mortos e descansaram.
Quando se movimentaram para avançar até o Tamanduá, sofreram ataque de todos os lados, com novas baixas. Recuaram pelo mesmo trajeto, chegando à noite a União da Vitória, onde o Gal. Mesquita deu por encerrada a expedição, afirmando que não mais lhe competia “andar com forças federais à caça de bandidos, como capitão do mato do tempo da escravatura”. Sob protesto, Fabrício Vieira recolheu seus comandados à Fazenda Chapéu de Sol, onde os fanáticos não ousavam chegar.
X – DO MESSIANISMO AO BANDITISMO
A jagunçada fez a festa, avançando e plantando redutos por toda a região. A retirada das tropas foi atribuída ao poder de José Maria, que em breve voltaria com os irmãos que haviam “se passado”, para implantar de vez a “lei de Deus”. Mas a verdade é que a fé deu lugar ao banditismo puro e simples, apavorando a população ordeira que se viu obrigada a colaborar com gado, mantimentos, armas e informações, sob pena de execução sumária.
Além de Chiquinho Alonso e Venuto Baiano, novos cabecilhas surgiram: Henrique Wolland, o “Alemãozinho”, Carneirinho, Bonifácio José dos Santos, o “Bonifácio Papudo” (por ser portador de bócio), o antigo maragato Aleixo Gonçalves de Lima, capitão da Guarda Nacional, Antônio Tavares Júnior, homem de boa escolaridade para a época, que escrevia sonetos e fora inspetor escolar e adjunto de Promotor, Olegário Ramos, negro gaúcho e maragato, o alemão Conrado Grober, o uruguaio Augustin Perez de Sarábia, o “Castelhano”, e por fim o mais célebre de todos, Adeodato Manoel Ramos ou Joaquim José de Ramos, ou simplesmente Adeodato, como ficou conhecido na história.
A “virgem” Maria Rosa ainda era a ligação entre os crentes e os monges, Elias de Moraes continuava a ser o conselheiro mais influente, mas o poder real estava nas mãos dos líderes citados, os “comandantes de briga”.
Depois da destruição de Caraguatá, Bom Sossego tornou-se o reduto-mor, sob o comando de Chiquinho Alonso, que em seguida ordenou a mudança para Caçador, às portas do vale de Santa Maria, considerado mais seguro em razão dos íngremes desfiladeiros e da estreita garganta que lhe servia de entrada. Multiplicam-se os ataques.
Aleixo investe contra Papanduva, Alemãozinho contra Itaiópolis, Bonifácio Papudo contra Canoinhas, com o consequente incêndio da serraria da Lumber em Três Barras. A 5 de setembro de 1914, à frente de 300 jagunços, Alonso ataca a estação de Calmon.
Todos os homens da localidade foram mortos e outra serraria da Lumber foi incendiada, juntamente com todo o casario da empresa americana. No dia seguinte ataca a estação de São João, dando o mesmo destino aos homens e às casas. Este poderoso comandante encontrou a morte no Dia de Finados do mesmo ano, ao atacar a colônia de Rio das Antas, bravamente defendida por seus habitantes.
XI – CAPITÃO MATOS COSTA
O encerramento da Expedição Mesquita, no final de maio de 1914, implicou no retorno das tropas a seus quartéis de origem. Na região conflagrada ficou apenas o 16º Batalhão do 6º Regimento de Infantaria, composto por 200 homens sob o comando do Capitão João Teixeira de Matos Costa, sediado em Vila Nova do Timbó. Este oficial entendia que a atuação dos caboclos não decorria apenas de fanatismo religioso e instinto assassino, mas de falta de instrução e de esperança de uma vida melhor, por força do abandono dos governantes e da exploração de grupos econômicos e latifundiários.
Disfarçado de vendedor ambulante, percorreu redutos, ouviu as queixas dos moradores e tomou iniciativas de pacificação. Afirmava que a culpa era dos coronéis, citando nominalmente Fabrício Vieira. A segunda esposa deste, Marta Salmória, bem como seus descendentes mais velhos, contavam que a desavença entre os dois tinha origem passional.
Matos Costa teria tido um caso com uma moça conhecida por “Filhinha”, sobrinha de Fabrício, inclusive levando-a à Curitiba e ao Rio de Janeiro na viagem que fez no final de julho. O romance acabou na volta, quando o tio proibiu a moça de encontrar-se novamente com o Capitão, que era casado. Revoltado, Matos Costa teria espalhado que a proibição se devia ao fato de Fabrício ser amante da sobrinha, evento que este sempre negou e do qual nunca existiram provas.
De toda maneira, é certo que o Capitão nutria simpatias pelos sertanejos e deles se apiedava, o que lhe valeu críticas póstumas do General Setembrino de Carvalho, insertas no seu famoso Relatório, em que afirma ter aquele agido como “catequista”, movido por uma cativante simpatia pelos fanáticos e cuidando mais da política do que do policiamento, o que causava indisciplina avultada na força.
Contudo, o cumprimento do dever falou mais alto. No mesmo dia em que a estação de São João ardia sob o fogo de Alonso em 6 de setembro de 1914, o Capitão foi chamado às pressas para conter ameaças de ataque à União da Vitória. Desta cidade partiu de trem com 60 homens. Antes de chegar a São João recebeu informação de que logo adiante estavam atocaiados 600 jagunços. Não recuou. Desceu do vagão com 40 de seus homens deixando 20 embarcados e ordenando ao maquinista que o seguisse devagar.
A três quilômetros da estação os bandoleiros, sempre sob o comando de Chiquinho Alonso, dispararam cerrado tiroteio. O bravo Capitão escorou o combate enquanto o maquinista apavorado, deu marcha à ré no trem e disparou de volta a União da Vitória, deixando a tropa sem abrigo. O resultado não podia ser outro: por dolorosa ironia do destino, Matos Costa sucumbiu nas mãos impiedosas daqueles a quem tentara defender. Seu corpo, junto com os de dois sargentos que o acompanhavam, só foi encontrado no dia 11 por um morador das cercanias e levado à Curitiba para seu descanso final. Ao cabo deste massacre, porém, o comandante de briga Venuto Baiano é assassinado por seus próprios companheiros, a mando de Alonso.
XII – A EXPEDIÇÃO SETEMBRINO
No dia seguinte, 12 de setembro de 1914, por nomeação do Presidente da República, assume o comando das operações na região conflagrada o General Fernando Setembrino de Carvalho, gaúcho de Uruguaiana. Mais fortes do que antes, e considerando-se vencedores do Gal. Mesquita, os jagunços não deram muita importância a seu sucessor: São Sebastião e “São” José Maria, auxiliados pelos irmãos que “se passaram” e pelos milhares que continuavam nos redutos, haveriam de fulminar os “peludos” e implantar em definitivo a Monarquia, que era a “lei de Deus”. Mal sabiam o quanto estavam enganados!
Setembrino de Carvalho estudou detalhadamente os mapas da região e as circunstâncias do conflito. Chamou de volta o Cel. Fabrício Vieira, elogiando-o depois em seu Relatório, porque gastara os honorários que lhe foram arbitrados pelo Governo Federal na contratação de mais combatentes, além dos que já compunham seu piquete de vaqueanos. Preparou um plano de guerra e passou à ação no exato momento em que os jagunços se achavam no auge das incursões.
XIII – DE CURITIBANOS A LAGES
A 26 de setembro, sob o comando de Castelhano e de Paulino Pereira, antigo comerciante perseguido pelo Cel. Albuquerque, a vila de Curitibanos, já deserta pela fuga do Intendente e demais habitantes, foi incendiada. A casa onde funcionava o cartório foi poupada, pois pertencia a Chico Ventura, mas todos os documentos foram atirados à rua e queimados.
A seguir, estes dois chefes dirigiram-se a São José do Cerrito com a intenção de promover ataque a Lages, anunciado para 17 de novembro, onde centenas de civis, comandados pelo ex-Governador Vidal e seu irmão Belisário Ramos, auxiliavam a tropa formal do Coronel Aleluia Pires. Paulino Pereira não concordou com o ataque, mas Chico Ventura acedeu aos desejos de Castelhano.
Acamparam nas proximidades da cidade, mas não a atacaram na data prevista. Na madrugada do dia seguinte, 18, o Capo Vieira da Rosa investe contra os caboclos, que fogem para Campo Belo do Sul e ali queimam todos os papéis do cartório. Retrocedem para Capão Alto e são atacados por cerca de 400 civis lageanos e alguns policiais. Iniciado o tiroteio, os civis se apavoram e debandam.
A polícia ficou sozinha e foi dizimada. Chico Ventura vai ao encontro de Paulino e todos regressam ao reduto-mor de Caçador. Castelhano pretendeu fugir para o Rio Grande, mas foi reconhecido e morto, tendo as orelhas decepadas. Assim terminaram as tentativas de conquistar a “Princesa da Serra”. Na região Norte as incursões eram constantes, em especial contra Canoinhas.
XIV – O PLANO DE SETEMBRINO
Ainda em setembro de 1914 o plano de guerra do General Setembrino tomou corpo. Estabeleceu quatro linhas externas, que deveriam formar um torniquete em torno da região dominada pelos bandoleiros, com o objetivo inicial de cortar suprimentos e destruir os pequenos redutos e depois partir para o ataque final à “cidade santa” de Santa Maria.
A Linha Norte estabeleceu-se em Canoinhas, a Oeste em União da Vitória, a Leste em Rio Negro e a Sul em Curitibanos. A Norte, auxiliada por cerca de 200 vaqueanos do Cel. Fabrício Vieira, atuava como Coluna Móvel, eliminando os redutos menores e as “guardas” que protegiam os maiores. Prisioneiros faziam-se às centenas. Após severos interrogatórios eram entregues aos fabricianos para serem “justiçados”.
No velho estilo da Revolução Federalista, Dente de Ouro e Isac Fuá aplicavam-lhes a “gravata colorada”. Fabrício não participava pessoalmente das execuções, pois tinha como princípio só matar em combate, mas também a elas não se opunha. Estava-se numa guerra de constantes movimentos de deslocação, sendo impossível destacar soldados para vigiar prisioneiros perigosos, espertos e bons de briga.
Libertá-los significava aumentar o poder de fogo do inimigo. A melhor solução, portanto, era despachá-los para engrossar as fileiras do exército encantado de José Maria. Doutra parte, cumpre ressaltar que o tratamento dado aos “peludos”, aí incluídas as mulheres, crianças e propriedades, era bem mais cruel.
A pedido de Setembrino, os homens de Fabrício patrulhavam as margens do Iguaçu entre Canoinhas e União da Vitória para impedir o comércio com os redutos. Foram acusados de prender e degolar dezessete homens à beira do rio, o que resultou em denúncias na imprensa de Curitiba. Setembrino mandou abrir inquérito, aceitou as explicações dos acusados e tudo ficou por isso mesmo.
Gaúchos, ele e Fabrício se entendiam e se admiravam. Em seu Relatório, o General assim se refere ao amigo: “Patriota resoluto e valente, acostumado desde a revolta de 93 onde combateu galhardamente ao lado do governo a dirigir homens, foi-lhe fácil reunir em pouco tempo cento e cinquenta sertanejos que sobre este se notabilizaram no correr da luta por outros assinalados serviços”.
XV – A QUEDA DOS REDUTOS DO NORTE E LESTE
No final de outubro, ao lado do Tenente-Coronel Onofre Pires, comandante da linha Norte, Fabrício Vieira participa da ofensiva contra Aleixo Gonçalves. Tomaram a guarda de Salseiro, mas, ao chegar ao reduto, depararam-se com tenaz resistência causadora de baixas de soldados e vaqueanos. A 7 de novembro, pela madrugada, o bando de Aleixo ataca as tropas acampadas em Salseiro e a 8 investe contra Canoinhas, então desguarnecida. Onofre Pires ordena a volta a esta cidade e sustenta-lhe a defesa dos ataques noturnos dos jagunços, que perduraram até 23 de dezembro.
A linha Leste, comandada pelo Coronel Júlio César, garantiu a defesa de Papanduva, diariamente atacada entre 18 e 21 de novembro pelas hordas de Tavares, Aleixo, Alemãozinho, Marcelo e Josefino. Os redutos destes chefes restaram arrasados e os sobreviventes acastelaram-se em Santa Maria e nas guardas que a cercavam.
Logo depois Tavares fugiu. Protegido pelas autoridades catarinenses - pois dizia que sua luta era pelo cumprimento do acórdão do Supremo Tribunal Federal que decidira a questão de limites com o Paraná em favor de Santa Catarina - foi viver tranquilamente no interior de Tubarão, sob nova identidade. Alemãozinho e Carneirinho aderiram às forças legais. Bonifácio Papudo rendeu-se em Canoinhas.
Atendendo à conclamação do General Setembrino, a partir de janeiro de 1915 milhares de caboclos famintos apresentam-se às autoridades. Muitos são deportados para o interior do Paraná, outros se estabelecem em terras já dominadas e outros tantos são sumariamente executados, dependendo do estado de espírito de quem recebia a rendição. Todas as noites, das improvisadas e abarrotadas prisões de Canoinhas, o vaqueano Pedro Ruivo retirava grupos de caboclos e os degolava nas matas dos arredores. Logo, porém, o comando percebeu que a esmagadora maioria dos rendidos compunha-se de velhos, doentes, mulheres e crianças. Era um ardil dos fanáticos.
A fome grassava pelos redutos e esta foi a maneira pela qual os chefes conseguiram livrar-se da carga humana inútil para a luta. Das cerca de 5.000 pessoas acampadas no reduto-mor de Santa Maria, os combatentes representavam mais de setenta por cento. Estas circunstâncias convenceram os militares de que a jagunçada lutaria até o último homem.
XVI – O FLAGELO DE DEUS ASSUME O COMANDO
A morte de Alonso no ataque a Rio das Antas, a 2 de novembro de 1914, criou um vácuo no comando do movimento. Adeodato, sobrevivente dessa malfadada incursão, era natural de Cerrito, a 40 km de Lages. Peão de estância, domador de cavalos e cantador repentista, aderira ao movimento fanático no reduto de Bom Sossego. Forte, decidido e valente, desde logo caiu nas boas graças de Elias de Moraes, que assim o convidou para ocupar o lugar de Alonso, recusado num primeiro momento.
Os partidários da “virgem” Maria Rosa aproveitam-se da situação e elevam Antoninho, ex-comandante do reduto de São Sebastião, à chefia geral, que ordena a mudança para este local, no vale do Timbozinho. Elias de Moraes se opõe e Antoninho retorna a seu antigo reduto com muito pouca gente. Nessas circunstâncias, Adeodato assume o comando supremo, afirmando que José Maria lhe aparecera em sonho e assim o determinara.
Por ordem sua, Aleixo Gonçalves vai a São Sebastião, prende Antoninho sob acusação de entreguismo e o traz a Santa Maria, onde é executado por traição. Adeodato desloca os moradores para cerca de légua e meia acima do vale, deixando na entrada uma nutrida guarda. Logo, porém, com o afluxo de crentes e a construção de novos casebres, todo o trecho se transforma numa verdadeira cidade, a “cidade santa” de Santa Maria, onde a volta de José Maria, à frente do Exército Encantado de São Sebastião, é tida como certa.
XVII – SETEMBRINO APERTA O CERCO
O empenho do Gal. Setembrino em asfixiar os rebeldes não desdenhou nenhuma possibilidade de usar recursos modernos. A então incipiente aviação tivera início em 23 de outubro de 1906, quando Santos Dumont realizou, no campo de Bagatelle, em Paris, o primeiro voo de um aparelho mais pesado que o ar, o 14 Bis, mas o exército brasileiro, oito anos depois, já dispunha de seus primeiros aviões.
Em meados de janeiro de 1915 o 1º Tenente Ricardo Kirk e o piloto civil Ernesto Darioli aportam em União da Vitória e já no dia 19 realizam o primeiro voo de observação sobre os vales dos rios Iguaçu e Timbozinho. Assim, pela primeira vez na história, a aviação foi empregada numa operação de guerra, ainda que para fins de reconhecimento. Infelizmente, no dia 1º de março o avião de Kirk caiu, ceifando-lhe a vida.
A Coluna Oeste, acantonada em União da Vitória, foi a que menos trabalho teve, pois essa zona estava praticamente dominada pelas forças legais. Ficou conhecida como “Coluna Bailarina”, pois seus oficiais, à falta do que fazer, participavam dos constantes bailes organizados pela sociedade local. Com o círculo estreitando-se sobre os jagunços, um batalhão foi deslocado para a linha Norte e outros dois para a linha Sul, inclusive Fabrício Vieira com cerca de 200 vaqueanos, sob o comando do Coronel Raul d'Estillac Leal, cujo Q.G. fora alocado em Curitibanos. A parte norte da região conflagrada vinha cedendo rapidamente.
A 27 de janeiro o Capitão Tertuliano Potiguara, à frente de duzentos homens, mais cinquenta vaqueanos de Pedro Ruivo, marcha até Vila Nova do Timbó, onde Aleixo tivera sua base, enfrentando seguidos tiroteios. A vila estava destruída e a tropa vai em direção do reduto de São Sebastião. Quanto mais se aproximam, mais intensa é a reação dos jagunços, cujo tiroteio de todos os lados causa seguidas baixas. Após muitas horas Potiguara entra no reduto, agora vazio, pois fora evacuado durante o renhido combate.
No retorno a Canoinhas, a soldadesca, incentivada pelos vaqueanos de Pedro Ruivo, saqueia e queima todas as casas que encontra. Entrementes, os fanáticos que não se entregaram, nem foram presos, engrossaram as fileiras dos combatentes de Santa Maria, inclusive Aleixo e seu bando, recebidos com festas e foguetório. A região sul, entretanto, passou a ser alvo de piquetes que arrebanhavam gado e mantimentos nas fazendas, incendiando-as e matando seus ocupantes. O próprio Cel. Henriquinho de Almeida, de início simpático ao movimento messiânico, teve sua fazenda assaltada, provando-se assim, uma vez mais, que a religiosidade se transformara no mais cruento banditismo.
O Cel. Fabrício e seu batalhão são encarregados de perseguir e destruir os piquetes de assaltantes, missão cumprida com rigor. Os que conseguiram escapar refugiaram-se em Santa Maria, de onde se tornava difícil sair em busca de gado e víveres, em face do cerco imposto pelas tropas do governo.
XVIII – O ATAQUE A SANTA MARIA
Em fevereiro, com as incursões jagunças à zona sul controladas, Estillac Leal posiciona sua coluna, dividida em três grupos, para iniciar o ataque à derradeira “cidade santa”. As guardas avançadas resistem com denodo e as baixas se avolumam. Os oficiais superiores afirmam que as dificuldades do terreno são insuperáveis.
O Coronel Estillac ordena a retirada para a Tapera Granemann, mas as tropas comandadas pelos Majores Nestor Passos, Estêvão Luís, Sousa Brito e Ciríaco relutam em abandonar posições a duras penas conquistadas. O fogo sertanejo não dá tréguas, a coluna já conta 70 baixas e o recuo geral torna-se inevitável. Na Tapera Granemann, onde novo ataque é planejado, o Cel. Fabrício junta-se à tropa com seus 200 homens e todos marcham rumo a Santa Maria. As baterias de artilharia são bem posicionadas, mas os canhões estão em péssimo estado e a munição prejudicada pela umidade constante.
Foram substituídos por um obus, que durante três horas não conseguiu acertar o alvo. A correção da mira, contudo, acertou em cheio uma procissão saída da igreja com inúmeras vítimas. Os casebres pegaram fogo e Adeodato ordenou imediato revide. Possessos, os jagunços investiram contra as peças de artilharia, obrigando-as à retirada. Responsável pela vanguarda e pelo serviço de espionagem, Fabrício enviou seus mais hábeis rastreadores e “bombeiros”, todos de cabeça raspada, para obterem informações. No meio de 5.000 homens, qualquer maltrapilho careca era reconhecido como “irmão”. Os espiões voltaram com notícias preocupantes: no meio da noite a jagunçada cercaria a coluna e mataria seus integrantes silenciosamente, à arma branca. Salvo os vaqueanos, os soldados vindos de outros estados desconheciam o terreno e a astúcia cabocla. Seriam miseravelmente sacrificados. Estillac aceitou as ponderações de Fabrício e a tropa retrocedeu, salvando-se do massacre.
Aceitou também a demonstração que este lhe fez da impossibilidade de entrar no reduto pelo desfiladeiro sul, única via de acesso formada por estreita garganta entre dois despenhadeiros facilmente bloqueada por duas dezenas de jagunços bem armados. A única possibilidade seria dividir a tropa em pequenos grupos, flanquear por leste e oeste ou dar uma longa volta até o norte, através de mata fechada e íngremes paredões, sob o fogo dos jagunços atocaiados nas grotas ou escondidos nos troncos e copas das árvores, enquanto a artilharia mantinha a pontaria sobre a garganta, na tentativa de desviar a atenção do inimigo.
No interior do reduto a fome é desesperadora, mas Adeodato mantém a disciplina com mão de ferro e sangue. Deslizes mínimos são punidos com a morte durante as formas realizadas, cinco vezes por dia. Ensandecido, esse comandante elimina pessoalmente as vítimas. Matou e deixou insepulta sua própria mulher, Maria Firmina da Conceição, a fim de casar-se com Mariazinha, viúva de Chiquinho Alonso.
Alegou que a falecida o traíra com o negro Joaquim Germano, igualmente morto por ele. Durante uma forma ordenou que o bravo comandante Aleixo Gonçalves desse um passo à frente e ali mesmo o matou. Além da fome, viviam todos em estado de medo e severamente vigiados para não fugirem.
XIX – A MARCHA HERÓICA DE POTIGUARA
O Gal. Setembrino convoca à União da Vitória os comandantes das quatro colunas e decide deflagrar ataque conjunto pelo norte, leste e sul. A coluna do oeste atuaria como obstrutora de fugas. A 31 de março, a coluna sul assesta seus obuses e deflagra forte bombardeio de desgaste, enquanto a infantaria adentra a mata tiroteando o inimigo.
Pelo norte, com cerca de 500 soldados e dezenas de vaqueanos, o Capitão Potiguara enceta marcha forçada ao Tamanduá, levando de roldão tudo o que encontra pela frente num trajeto de quase vinte léguas. Em Timbó Grande esmaga a resistência de 400 caboclos que tentam obstar-lhe a caminhada e apruma para Santa Maria. A tropa cai firme sobre os jagunços. A luta é sangrenta, com significativas baixas de ambos os lados.
Maria Rosa entra na luta, seu cadáver se perde no anonimato dos demais mortos e seu espírito sobe ao paraíso de José Maria. A 2 de abril o reduto avançado de Aleixo é destroçado. A igreja e mais de 900 ranchos viram cinzas. A tropa ali descansa durante a noite e no dia seguinte, com admirável ímpeto, combate até a tarde e entra no reduto principal, abandonado pelos jagunços.
À noite, porém, estes se reagrupam e cercam o intrépido Capo Potiguara com nutrida fuzilaria, mas este não pretende ceder a posição tão arduamente conquistada. Destaca 30 homens para levarem desesperada mensagem pedindo socorro a Estillac que, de acordo com o plano traçado pelo General Setembrino, já devia estar em Santa Maria, mas continuava imobilizado no vale. Estillac Leal hesita em mover suas tropas por entender que estas seriam destroçadas na entrada do desfiladeiro.
XX – FABRICIO VIEIRA SOCORRE POTIGUARA
O Cel. Fabrício se revolta. Mesmo ameaçado de responder por indisciplina, reúne seus vaqueanos e marcha resoluto em socorro de Potiguara. Não era de seu feitio acovardar-se, nem deixar os companheiros ao desamparo, quaisquer que fossem os perigos e sacrifícios. Espalhados pela mata, rastejando entre as árvores e se comunicando por assovios de pássaros, muitos deles feridos pelo fogo do inimigo invisível, os vaqueanos e seu comandante logram vencer as dificuldades do caminho e no meio da tarde agrupam-se nas proximidades do reduto.
Com gritos e salvas de tiros, entram no “quadro santo” de Santa Maria, para alívio dos sitiados. Após comovido abraço, Fabrício transmite a Potiguara o aviso de Estillac Leal: não pudera avançar em razão da invencível resistência dos caboclos; sua tropa aguardaria os conquistadores do reduto nos altos de uma serra próxima. Potiguara exasperou-se com Estillac, a quem acusou de covardia. Soldados e vaqueanos, com grande número de feridos, pernoitam no reduto, já agora sob fraco fogo jagunço. Na manhã seguinte o que restava da “cidade santa” foi completamente arrasado.
XXI – UM DOLOROSO DILEMA
Enquanto as tropas preparavam improvisados banguês para carregar seus feridos e mortos, algumas crianças de cinco ou seis anos, famintas e seminuas, adentram o reduto e contam que muitas outras se acham escondidas mais abaixo. Guiam alguns soldados até uma grota localizada na reentrância de um desfiladeiro.
O espetáculo era desolador: dezenas de pequenos seres de seis anos para menos, muitos ainda bebês de peito, esquálidos e com a voz sumida pelo pranto, espalhavam-se deitados na gruta sombria. Muitas já estavam mortas, outras tantas agonizantes, mas 57 foram recolhidas com vida. Ali tinham sido deixadas pelas mães que, por ordem de Adeodato, entraram no combate, foram mortas ou tiveram de fugir sem poder resgatá-las.
Potiguara despede-se e deixa as crianças sob os cuidados dos vaqueanos, pois seus homens válidos sequer eram suficientes para conduzir os feridos e mortos da tropa. Fabrício picadas (sic), nem leite para alimentar os de peito. A tentativa de salvá-las implicaria em abandonar seus mortos e feridos, o que estava fora de cogitação. Esquecê-las no reduto, onde não havia mais ninguém e para o qual certamente nenhum jagunço voltaria, significava condená-las à morte cruel por inanição ou pela voracidade dos animais selvagens.
A situação era muito delicada, mesmo para aqueles homens endurecidos pela violência e acostumados à morte diária. Contudo, uma solução precisava ser tomada de imediato. O Cel. Fabrício convoca seus homens de confiança e a decisão sai por unanimidade: degola pietatis causa. Um biombo de lona foi erguido à frente de um tronco de imbuia que servira de trincheira na cabeceira de um pequeno despenhadeiro.
Uma a uma as crianças eram estendidas sobre o tronco, vendadas com um trapo de pano. Dente de Ouro e Isac Fuá, com um único golpe de suas espadas bem afiadas, separavam a cabeça do tronco e atiravam os restos ao fundo do penhasco. Em poucos minutos o sacrifício estava terminado. O Tenente Enéas tirou seu terço do bolso e todos ajoelhados rezaram o Pai Nosso e a Ave Maria pelas almas dos inocentes.
Era 5 de abril de 1915, dia da última degola na cidade sagrada de Santa Maria!
XXII – O FIM DO MOVIMENTO JAGUNÇO
A destruição de Santa Maria marcou o fim da Expedição Setembrino, cujas tropas se retiraram para suas bases de origem. A segurança da região foi atribuída à polícia estadual e a grupos de vaqueanos. Adeodato sobreviveu. Com os caboclos restantes formou um novo reduto em São Miguel com a dura disciplina anterior, ao qual se seguiu o de Pedras Brancas, comandado por seu rival Sebastião de Campos.
Reiniciaram-se os ataques a fazendas e casas de negócio, em busca de suprimentos. O Capo Vieira da Rosa, comandante das forças de ocupação, auxiliado por grupos de vaqueanos, entrou em ação. Adeodato muda-se para um derradeiro reduto às margens do rio Timbó, onde hoje é a sede do município de Timbó Grande e ali apresenta solenemente um preto de barbas brancas, o Frei Manoel, a quem passaram a chamar de Pai Velho, como sendo o antigo monge João Maria, que se encarrega das rezas e devoções.
Em outubro de 1915 o reduto de Pedras Brancas foi arrasado pela polícia militar e pelos vaqueanos de Lau Fernandes, deixando inúmeros mortos. Parte dos sobreviventes entregou-se às forças e parte dirigiu-se a São Pedro, onde sua chegada agravou a situação de fome que ali já rondava. Em dezembro do mesmo ano uma tropa de vaqueanos ataca o reduto de surpresa, enquanto o povo rezava. Pai Velho foi morto na porta da igreja e os crentes debandaram sem ter como reagir.
Adeodato fugiu para o mato com um grupo de pessoas famintas que iam morrendo pelas veredas. À margem do Rio Tamanduá ordenou que os companheiros o atravessassem e do alto de um barranco gritou-lhes: “Perdemos a guerra: a guerra está perdida. Quem quiser ir para o mato vá. Não quero ninguém comigo”. Mariazinha ficou, mas em seguida foi morta por ele. Sozinho, vagueou meses pela mata.
Um dia encontrou o velho Euzébio, que saíra em busca de mel, matando-o após a troca de algumas palavras. Faminto e seminu, foi preso sem resistência por alguns moradores da região que o reconheceram. Respondeu a júri em Curitibanos. Condenado a 30 anos, foi cumprir pena na penitenciária de Florianópolis.
A 3 de fevereiro de 1923 tomou o fuzil - descarregado - da sentinela no portão da guarda e tentou fuga. O então tenente Trujilo Melo, depois famoso coronel da Polícia Militar, que chegava no momento, alvejou-o fatalmente com dois tiros de revólver. Minutos depois, o Flagelo de Deus sentava praça no exército encantado de José Maria.
XXIII – EPÍLOGO
Em 1917 o Cel. Fabrício Vieira, viúvo e com 51 anos de idade, já residindo em Canoinhas, ruma para o Rio Grande do Sul e hospeda-se na casa do patriarca Eduardo Salmória, um dos primeiros colonizadores do município de Anita Garibaldi, à margem do Rio Canoas. Ali conhece a bela menina Marta, filha do anfitrião, com 16 anos de idade e profundos olhos azuis. Foi paixão mútua à primeira vista.
No retorno Fabrício a leva consigo, contra a vontade do velho Salmória. Em Canoinhas, enquanto o marido cuida dos negócios da Fazenda Chapéu de Sol, Marta gera filhos. Três homens - Garibaldi, Napoleão e Bolívar, este futuro oficial da Força Aérea Brasileira, todos já falecidos. As mulheres são cinco: Sebastiana e Diva, falecidas, Anita Garibaldina, Lisete e Maria - mãe do autor - todas ainda vivas.
Em 1923 recebe um apelo do Gal. Felipe Portinho para juntar-se à revolução gaúcha de Assis Brasil contra Borges de Medeiros. Reúne seus vaqueanos, atravessa o pelotas, passa por sua Vacaria natal e toma a cidade de Bom Jesus. Participa da luta até a “Paz de Pedras Altas”, de cuja ata foi um dos signatários. A seguir é convocado para dar combate à Coluna Prestes e atende aos apelos do governo. Em 1930 adere à Revolução e com seus homens assegura, em Porto União, a passagem do trem que conduzia Getúlio Vargas.
Cardíaco, retira-se para o lar, agora transferido para Valões (atual lrineópolis). Na madrugada de 20 de abril de 1936 desperta com o choro da filhinha Lisete, de apenas 8 meses. Não se sente bem e pede à esposa que lhe faça um chá. Quando ela retorna ele está morto. Assim, serenamente, partiu o velho guerreiro. Qualquer que seja o páramo para onde “voou sua alma”, com certeza não foi para o acampamento do exército encantado de José Maria. Seu túmulo, no cemitério de Irineópolis, ostenta apenas uma singela placa:
“Cel. Fabrício Vieira, Herói do Contestado”
*Edson Nelson Ubaldo, neto do Cel. Manoel Fabrício Vieira, é Desembargador aposentado do TJSC e titular da Cadeira nº 12 da Academia Catarinense de Letras. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Lages.
FONTES
A maior parte dos dados históricos contidos neste trabalho foi obtida dos cronistas da luta, Herculano ASSUMPÇÃO, Demerval PEIXOTO, J. O. Pinto SOARES, do Relatório do Gal. Setembrino de CARVALHO e de publicações da época, bem como dos diversos historiadores e estudiosos do Contestado, dentre os quais Oswaldo Rodrigues CABRAL, Aujor Ávila da LUZ, Maurício Vinhas de QUEIROZ, Marli AURAS, Duglas Teixeira MONTEIRO, Walter Tenório CAVALCANTI, Alfredo e Zélia LEMOS, Paulo Ramos DERENGOSKI, Donaldo SCHULLER, Ezequiel ANTUNES, José Fraga FACHEL, Delmir José VALENTINI e especialmente Nilson THOMÉ, que em sua obra tomou o Cel. Fabrício Vieira como paradigma dos coronéis de então.
Com ele o autor, que foi seu amigo e colega na Universidade do Contestado, em Caçador, teve longas horas de conversa sobre o Contestado, com preciosa troca de informações. Episódios envolvendo Fabrício Vieira e outros, que não aparecem nos autores acima citados, têm como fonte a tradição oral da família do autor, cujos antepassados estiveram direta ou indiretamente ligados à guerra do Contestado.
Além de seu avô materno Fabrício Vieira, o autor, pelo lado do pai, Nelson Varella Ubaldo, é sobrinho-neto de João da Costa Varella, que em Irani intermediou a comunicação entre José Maria e o Cel. João Gualberto. Sua avó paterna, Júlia da Costa Varella, era comadre e devota de “São” João Maria. Seu avô paterno, Major Arlindo da Conceição Ubaldo, conversou várias vezes com Adeodato na cadeia de Lages. O próprio autor, que por décadas exerceu a advocacia em Campos Novos, atuou em diversas ações de terras envolvendo antigos fanáticos, inclusive em favor de Francisco Gomes Damasceno, filho de Praxedes. As revelações deixadas por estas pessoas, ainda que não escritas, merecem ser trazidas a público, pois são aportes importantes à complementação do episódio que ensanguentou um terço do território catarinense.